Janeiro, 6
Da fundura do tempo a memória do Dia de Reis, na época em que me cabia a tarefa de desmanchar o presépio. O presépio era uma versão íntima de uma cascata S. Joanina, e o Menino Jesus ainda não tinha envelhecido ao ponto de parecer um pantomineiro de feira com a sua cara de bêbado e barbas de franja de reposteiro, e para cúmulo do mau gosto, envergando um pijama garrido oferecido pela Coca-Cola.
Um dia, lá em casa, por alturas do início da minha escola primária, substituímos as figuras da Natividade por um profano píncaro de pinheiro, esgrouviado e meio torto, enfeitado com neve de algodão e uns penduricalhos de plástico, e rendemo-nos modestamente ao consumismo capitalista. E o Menino Jesus envelheceu subitamente e tornou-se no Pai Natal, com aquela cara de avô gaiteiro. Que mão é esta que reduz todas as coisas que nos enfeitam a vida a objetos sem alma?
Fevereiro, 10
Há anos que não vinha aqui. Parei o carro e subi a vereda do Monte Grande. Tudo parece pequeno, como acontece com as árvores de Natal: nós crescemos e elas ficaram com o tamanho da infância.
Caminho, ouvindo as pedras a gemerem debaixo dos ténis. Conheço esta música. Sorrio, porque não tenho medo agora.
No outono de 74 vim aqui um dia só para cheirar a urze, ouvir o sussurro do pinhal e fumar um cigarro, e entrei em pânico. As pedras a gemerem debaixo dos pés, e eu ali num trilho deserto, sem arma, sem companhia.
O chão era o nosso inimigo e as picadas de Cabo Delgado traiçoeiras. Não se pode lutar contra o chão, cada passo era um ato heroico de sobrevivência.
Levei anos a reconciliar-me com os caminhos e as veredas.
Só de longe em longe, quando me apanha distraído, ainda a visão das goelas carnívoras da Terra abocanhando-me uma perna.
Abril, 18
Era mais ou menos aqui que estava a bomba do arco de ferro. O corpo cilíndrico da cobertura do poço escondia um mundo misterioso e subterrâneo. Ainda se sente a calma das tardes de verão, em que a vida à superfície do mundo, na sua aparente inconsequência, de vez em quando alterava levemente a substância das coisas. Tenho a certeza que a luz era mais doce. Tenho a certeza que o relógio do tempo tinha outros vagares. Tenho a certeza que se vivia mais; não porque os anos fossem mais numerosos, mas porque os segundos eram mais longos, muito mais longos.
O Tempo anda à velocidade por que passamos pelas coisas, e, no tempo em que havia aqui uma bomba de arco de ferro, eu não passava; vivia aqui.
Junho, 6
Na estrada de Vale-de-Cide, daquele lado, onde o muro do arvoredo criava uma cabeceira em que apetecia encostar a cabeça para dormir a sesta, havia um pó finíssimo, sobre o qual os camponeses deixavam uma nítida impressão plantar a cada passada.
Nessa altura homem e planeta eram uma comunhão. No meu egoísmo bucólico ignoro toda a dor precisa para imprimir cada uma daquelas pegadas na poeira da estrada, morna como borralha aquecida na fornalha do Sol.
Hoje ninguém passa a pé naquela estrada com o peso de um dia de lavoura às costas, e sobre o alcatrão não há uma só marca humana.
Há de haver uma forma de sermos felizes sem desumanizarmos o mundo.
Junho, 10
A minha avó vinha aqui à travessa da rua da loja consultar o Sr. Augusto enfermeiro. O Sr. Augusto enfermeiro era o verdadeiro médico da aldeia. Eu esperava sentado no chão empedrado da travessa da rua da loja, que fazia as vezes de sala de espera, e achei o livro. Não era grande o livro. Parecia um pequeno taco de madeira suja, de folhas grossas.
"Não faças teu o que não é teu" era o aforismo da minha mãe para que procurasse sempre o dono das coisas que encontrasse e assim perdesse o prazer da descoberta e os favores da fortuna.
Guardei o livro com o gozo de quem lança mão de um furto e todas as noites o olhava secretamente, tentando interpretar as manchas de tinta que sabia chamarem-se letras.
Fui entendendo o que estava escrito à velocidade com que fui aprendendo a ler. Letra a letra, palavra a palavra.
Mas um conjunto de palavras não é um texto, como um conjunto de ramos não é uma árvore. Tem sempre que haver um tronco comum para que as palavras façam sentido. Esse tronco demorou tanto a aparecer que as palavras ficaram soltas na minha memória antes de lhes ter captado o sentido.
As palavras bailavam na minha mente. Não eram uma história, eram um bailado de palavras.
Tenho hoje a certeza: a poesia nasceu em mim, muito antes de eu saber ler.
04 fevereiro 2015
A grande fome
As folhas de oliveira têm um som único quando ardem. A água do escorrido a ferver na trempe sobre o fogo, também. E o vinho a sair do garrafão para o copo? Tudo tem um som único, essa é que é a verdade. Tudo tem um sabor único, um cheiro único. E cada momento que passa é único também. Mas quando estamos entretidos a viver a vida, não damos por isso; e ainda bem, porque não há nada nesta vida que supere vivê-la. Mas chega sempre uma noite de verão como esta em que a vida parece que parou porque toda a gente dorme. Será tarde? Ter-me-ei esquecido das horas enquanto recordava o almoço em casa do Zé e da São e estes pensamentos antigos me assaltaram?
Mas sem me ter esquecido das horas, sem esta solidão, sem este silêncio, como poderia ouvir de novo as folhas de oliveira a darem estalidos no fogo, o escorrido a borbulhar na panela, o garrafão a gargarejar vinho para o copo e os movimentos das pessoas à minha volta, únicos e irrepetíveis?
A hora da ceia.
As coisas apareciam sobre a mesa vindas não sei de onde. Chegava a hora de comer e as mãos habituadas a tarefas árduas e rudes ganhavam movimentos leves de dança.
Nunca ninguém pegou numa boroa de milho como a minha avó. Trazia-a para a mesa envolta num pano com uma mão por baixo e outra por cima. Pousava-a e abria o pano com a elegância e o cerimonial de quem manuseava os paramentos da eucaristia. "Nunca com o lar para cima, meu filho, nunca com o lar para cima, que é pecado."
A relação da minha avó com os alimentos era como o ritual da consagração, só encontrável entre as pessoas que produzem o que comem, e mais especialmente entre aquelas que alguma vez passaram fome. "Íamos inda de noite escurinha a Tamengos pra comprar uma mãoxita de farinha pra fazer pão e as mais das vezes vínhamos sem racinha de nada."
A comida não era um dado adquirido para quem atravessou a Grande Fome, como a minha avó chamava à Segunda Guerra Mundial.
"No tempo da Grande Fome, meu filho, uma ocasião cheguei a casa tão feliz com uma farinha tão fina e tão branca; mas já quando a tendia parecia que era obra do diabo, peganhenta que não saía dos dedos, e depois de cozidas as broas ficaram duras que nem adobes. Que maldade, meu filho, que maldade! Que alma danada é o home que vende gesso misturado na farinha a uma pobre mãe que quer matar a fome à filha doente…."
Pesa na minha memória, como se eu a tivesse testemunhado, esta imagem da minha avó metendo massa de boroa no forno e tirando adobes, como se Deus tivesse enlouquecido. E não enlouquece no coração dos homens? Quem combateu sabe que sim. Quem pegou numa arma, ainda que para cumprir um dever, sabe que escondido dentro de cada um de nós há um deus enlouquecido.
E a minha avó limpava os olhos com os polegares como nunca vi fazer a ninguém. Como se quisesse esmagar as lágrimas. "Que maldade, meu filho, que maldade!"
Era mais aceitável morrer envenenado com comida estragada do que deitá-la fora. A minha avó amava cada pedaço de pão já rijo, cada fruto meio podre. "Primeiro as maçãs tocadas meu filho", e eu cruelmente inocente: "Mas assim nunca comemos maçãs boas, vó!"
Um simples feijão-verde era o produto de muita dedicação, labor e contemplação, a boroa de milho não levedava sem uma oração adequada e o meu avô aguardava pela chanfana como um pai aguarda pelo seu primeiro filho, fazendo círculos no pátio.
Experimentassem recusar um copo de vinho, que logo entenderiam isto. Quem recusa um copo de vinho não quer saber o trabalho que deu, e não há maior sacrilégio que recusar um copo de vinho a quem podou, empou, cavou, sulfatou, desramou, vindimou, pisou as uvas, e muitas vezes teve que lançar mão da água e do açúcar para operar o milagre da multiplicação quando a Natureza se mostrava somítica. Recusar um copo de vinho ao lavrador, é como desfazer na obra de um artista, é como desfeitear um filho seu; faz-se um inimigo para a vida.
Às vezes de estômago vazio, vinham-nos as lágrimas aos olhos com a acidez, ou ficava-nos a língua perra como se tivéssemos ingerido um adstringente, mas ai de quem não tivesse um ar embevecido olhando a zurrapa a contraluz com um assentimento de aprovação. Quem mata o corpo a pouco e pouco para extrair da terra bruta o seu sustento e algum conforto e no-los oferece, não aceita menos que gratidão em troca.
Outras vezes pela noite dentro uma roda de amigos, celebrando a amizade num copo de vinho! E a minha avó de manhã: "De que tanto falam vocês?"
Que pena que te tenhas perdido, meu amigo, nos labirintos da vida que nos atraem e entontecem. Não sabes a falta que me faz erguer de novo o meu copo e proferir a maior das banalidades como se tivesse acabado de resolver todos os problemas da humanidade numa palavra. Foi o mais próximo que estive de ter um irmão. E vai mais um copo! Tu rias-te, e sem concordar, concordavas sempre; e eu não acreditando, acreditava sempre; sim, porque os homens precisam desta fraternidade. Os homens vivem em alcateia. Mais um copo, só mais um, e a noite lá fora não tardará sem nós.
Já quase não bebo, sabes? Só fora das refeições, quando encontro alguém que saiba o que é a amizade.
E quando ia lá fora urinar contra o muro do pátio? Não tardava nada, estávamos todos lá fora a urinar contra o muro. Quem nunca mijou contra um muro sem deixar morrer a conversa não sabe o que é amizade. E depois de arranjar espaço para mais, voltávamos para a adega. Só, só mais um, e a noite não amanhecerá sem nós. "De que tanto falam vocês?" lá perguntava a minha avó de manhã.
Ainda hoje não sei. Será que trazíamos em nós a memória genética da Grande Fome da última guerra? Será que antecipávamos um tempo futuro onde outra guerra nos haveria de roubar a própria juventude? De que falávamos nós pela noite dentro?
Ah, que interessa isso agora? Esse era o tempo de todas as certezas. Não fazíamos perguntas à vida; nós tínhamos as respostas.
Hoje O Zé e a São, da minha idade, lembram-se de mil histórias como esta. Mas cada história que recordamos é única para cada um de nós. Como aquele momento, hoje, ao almoço, era ele único e irrepetível também.
Enquanto traziam comida para a mesa era como se celebrassem todas as virtudes da Terra. Desde o início da Humanidade que o Homem celebra à mesa as virtudes da Terra, e é nesse acto colectivo que forja as cadeias da amizade.
E um imenso consolo feito de afecto e respeito tomou conta de mim e sobrepôs-se à gula. Não eram géneros colhidos nas prateleiras multicolores do hipermercado, como produtos de uma linha de produção, repetíveis e idênticos como clones, eram legumes nascidos lá mesmo, no quintal, onde outros aguardam a sua vez, sob o olhar paternal de quem lhes deu vida, era uma boroa oferecida pelas próprias mãos que a amassaram, como um acto íntimo de ternura. Era o vinho, que é sempre o orgulho da casa.
Perdeu-se isto. Só quem nunca teve isto dia após dia, dia após dia, não sente que se perdeu para sempre; ou que está mesmo, mesmo, prestes a perder-se.
E eu a pensar outra vez na minha avó a trazer a boroa como se fosse um tesouro, e a colocá-la na mesa como se fosse a taça da eucaristia.
Pela festa da Nossa Senhora do Ó, quando o leitão assado pontificava a abastança do almoço melhorado, e os olhos de todos se enchiam de uma grande alegria; no olhar da minha avó, havia ainda uma sombra de mágoa, e baixava envergonhado por destoar dos olhares de festa em redor. "Que é isso vó?"
"Que Deus me perdoe, meu filho, que nunca como uma migalha de pão que me não lembre da Grande Fome." E esmagava as lágrimas com os polegares.
Mas sem me ter esquecido das horas, sem esta solidão, sem este silêncio, como poderia ouvir de novo as folhas de oliveira a darem estalidos no fogo, o escorrido a borbulhar na panela, o garrafão a gargarejar vinho para o copo e os movimentos das pessoas à minha volta, únicos e irrepetíveis?
A hora da ceia.
As coisas apareciam sobre a mesa vindas não sei de onde. Chegava a hora de comer e as mãos habituadas a tarefas árduas e rudes ganhavam movimentos leves de dança.
Nunca ninguém pegou numa boroa de milho como a minha avó. Trazia-a para a mesa envolta num pano com uma mão por baixo e outra por cima. Pousava-a e abria o pano com a elegância e o cerimonial de quem manuseava os paramentos da eucaristia. "Nunca com o lar para cima, meu filho, nunca com o lar para cima, que é pecado."
A relação da minha avó com os alimentos era como o ritual da consagração, só encontrável entre as pessoas que produzem o que comem, e mais especialmente entre aquelas que alguma vez passaram fome. "Íamos inda de noite escurinha a Tamengos pra comprar uma mãoxita de farinha pra fazer pão e as mais das vezes vínhamos sem racinha de nada."
A comida não era um dado adquirido para quem atravessou a Grande Fome, como a minha avó chamava à Segunda Guerra Mundial.
"No tempo da Grande Fome, meu filho, uma ocasião cheguei a casa tão feliz com uma farinha tão fina e tão branca; mas já quando a tendia parecia que era obra do diabo, peganhenta que não saía dos dedos, e depois de cozidas as broas ficaram duras que nem adobes. Que maldade, meu filho, que maldade! Que alma danada é o home que vende gesso misturado na farinha a uma pobre mãe que quer matar a fome à filha doente…."
Pesa na minha memória, como se eu a tivesse testemunhado, esta imagem da minha avó metendo massa de boroa no forno e tirando adobes, como se Deus tivesse enlouquecido. E não enlouquece no coração dos homens? Quem combateu sabe que sim. Quem pegou numa arma, ainda que para cumprir um dever, sabe que escondido dentro de cada um de nós há um deus enlouquecido.
E a minha avó limpava os olhos com os polegares como nunca vi fazer a ninguém. Como se quisesse esmagar as lágrimas. "Que maldade, meu filho, que maldade!"
Era mais aceitável morrer envenenado com comida estragada do que deitá-la fora. A minha avó amava cada pedaço de pão já rijo, cada fruto meio podre. "Primeiro as maçãs tocadas meu filho", e eu cruelmente inocente: "Mas assim nunca comemos maçãs boas, vó!"
Um simples feijão-verde era o produto de muita dedicação, labor e contemplação, a boroa de milho não levedava sem uma oração adequada e o meu avô aguardava pela chanfana como um pai aguarda pelo seu primeiro filho, fazendo círculos no pátio.
Experimentassem recusar um copo de vinho, que logo entenderiam isto. Quem recusa um copo de vinho não quer saber o trabalho que deu, e não há maior sacrilégio que recusar um copo de vinho a quem podou, empou, cavou, sulfatou, desramou, vindimou, pisou as uvas, e muitas vezes teve que lançar mão da água e do açúcar para operar o milagre da multiplicação quando a Natureza se mostrava somítica. Recusar um copo de vinho ao lavrador, é como desfazer na obra de um artista, é como desfeitear um filho seu; faz-se um inimigo para a vida.
Às vezes de estômago vazio, vinham-nos as lágrimas aos olhos com a acidez, ou ficava-nos a língua perra como se tivéssemos ingerido um adstringente, mas ai de quem não tivesse um ar embevecido olhando a zurrapa a contraluz com um assentimento de aprovação. Quem mata o corpo a pouco e pouco para extrair da terra bruta o seu sustento e algum conforto e no-los oferece, não aceita menos que gratidão em troca.
Outras vezes pela noite dentro uma roda de amigos, celebrando a amizade num copo de vinho! E a minha avó de manhã: "De que tanto falam vocês?"
Que pena que te tenhas perdido, meu amigo, nos labirintos da vida que nos atraem e entontecem. Não sabes a falta que me faz erguer de novo o meu copo e proferir a maior das banalidades como se tivesse acabado de resolver todos os problemas da humanidade numa palavra. Foi o mais próximo que estive de ter um irmão. E vai mais um copo! Tu rias-te, e sem concordar, concordavas sempre; e eu não acreditando, acreditava sempre; sim, porque os homens precisam desta fraternidade. Os homens vivem em alcateia. Mais um copo, só mais um, e a noite lá fora não tardará sem nós.
Já quase não bebo, sabes? Só fora das refeições, quando encontro alguém que saiba o que é a amizade.
E quando ia lá fora urinar contra o muro do pátio? Não tardava nada, estávamos todos lá fora a urinar contra o muro. Quem nunca mijou contra um muro sem deixar morrer a conversa não sabe o que é amizade. E depois de arranjar espaço para mais, voltávamos para a adega. Só, só mais um, e a noite não amanhecerá sem nós. "De que tanto falam vocês?" lá perguntava a minha avó de manhã.
Ainda hoje não sei. Será que trazíamos em nós a memória genética da Grande Fome da última guerra? Será que antecipávamos um tempo futuro onde outra guerra nos haveria de roubar a própria juventude? De que falávamos nós pela noite dentro?
Ah, que interessa isso agora? Esse era o tempo de todas as certezas. Não fazíamos perguntas à vida; nós tínhamos as respostas.
Hoje O Zé e a São, da minha idade, lembram-se de mil histórias como esta. Mas cada história que recordamos é única para cada um de nós. Como aquele momento, hoje, ao almoço, era ele único e irrepetível também.
Enquanto traziam comida para a mesa era como se celebrassem todas as virtudes da Terra. Desde o início da Humanidade que o Homem celebra à mesa as virtudes da Terra, e é nesse acto colectivo que forja as cadeias da amizade.
E um imenso consolo feito de afecto e respeito tomou conta de mim e sobrepôs-se à gula. Não eram géneros colhidos nas prateleiras multicolores do hipermercado, como produtos de uma linha de produção, repetíveis e idênticos como clones, eram legumes nascidos lá mesmo, no quintal, onde outros aguardam a sua vez, sob o olhar paternal de quem lhes deu vida, era uma boroa oferecida pelas próprias mãos que a amassaram, como um acto íntimo de ternura. Era o vinho, que é sempre o orgulho da casa.
Perdeu-se isto. Só quem nunca teve isto dia após dia, dia após dia, não sente que se perdeu para sempre; ou que está mesmo, mesmo, prestes a perder-se.
E eu a pensar outra vez na minha avó a trazer a boroa como se fosse um tesouro, e a colocá-la na mesa como se fosse a taça da eucaristia.
Pela festa da Nossa Senhora do Ó, quando o leitão assado pontificava a abastança do almoço melhorado, e os olhos de todos se enchiam de uma grande alegria; no olhar da minha avó, havia ainda uma sombra de mágoa, e baixava envergonhado por destoar dos olhares de festa em redor. "Que é isso vó?"
"Que Deus me perdoe, meu filho, que nunca como uma migalha de pão que me não lembre da Grande Fome." E esmagava as lágrimas com os polegares.
03 fevereiro 2015
O Voo da Calhandra
O Sr. Manuel da Leonarda afina o violino. Uma corda e depois outra. Parecem gemer de dor ao serem esticadas. Depois afina os dedos. Torrentes de notas. Algumas longas, mais longas do que o comprimento do arco parece permitir. Experimenta o violino como quem testa o motor de um automóvel antes da corrida. Agora repete uma nota. Repete-a fazendo-me lembrar um escanção a provar um trago de vinho até lhe encontrar o bouquet.

O Vale d'Aveia desdobra-se encosta a baixo, cheia de retalhos, como uma manta de patch-work e sobe depois, azulado pela distância, até cobrir o corpo deitado da serra ao fundo. Não tanto, que não deixe a nu o seio da Serra do Buçaco, de mamilo erecto desenhado sobre a tela azul do céu. E uma cotovia pousa e levanta voo e pousa. E o violino a despejar torrentes de notas sobre o vale, a incitá-la, a chamá-la. Reconheço os fragmentos da música que o Sr. Manuel da Leonarda vem ensaiando há semanas: O Voo da Calhandra.
Vê-se que os dedos já estão desentorpecidos. Vê-se que o violino já está afinado como um veleiro de cordame tenso e velas retesadas pelo vento preparado para uma longa viagem. Finalmente um pequeno silêncio. Imagino o Sr. Manuel da Leonarda em frente da janela do quarto enchendo o peito de ar como um paraquedista a preparar-se para o salto sobre o vazio.
Onde se meteu a cotovia? Será que parou algures à espera do violino, como eu em cima do terraço da casa da adega? Apuro a atenção. Um fiozinho de som. Um cabelo levemente ondulado pela brisa. Um fumo, um aroma sonoro quase impercetível ao ouvido. Tão débil que não tenho a certeza de algo ter mudado em mim, senão por uma subtil sensação de leveza. Eu, e a cotovia ao fundo mais leve também. Ganha altura sobre o vinhedo como uma folha solta ao colo do vento.
O ar de final de Outono por sobre os vinhedos do Vale d'Aveia cria ondulações que não vejo, mas que sinto nitidamente no plexo solar. Uma rajada de pequeninas ondas sonoras vêm rebentar de encontro a mim. Na vertigem da paisagem que desce daqui até Vale de Cide, a cotovia ganha altura como se uma corrente de ar quente a elevasse, como se quisesse emergir da maré musical que já inunda o vale.

Do terraço da adega eu domino o vale com o olhar. Da janela do quarto o violino do Sr. Manuel da Leonarda domina-me a mim e ao vale, e a cotovia domina tudo. Tudo, não. Tudo, menos o Tempo, essa quarta dimensão, que para além da amplitude do meu olhar, da profundidade do vale e da altura da cotovia sobre os vinhedos, atravessa tudo e confere durabilidade, através da nossa memória, à consciência que temos das coisas. Mesmo para além da sua existência. Há um passo, uma cadência, uma grelha que baliza essa durabilidade, materializada na teia sonora que atravessa o ar, que me convida ao devaneio e que instiga uma cotovia a ganhar altura sobre o Vale d'Aveia.
O Tempo não é apenas o que tudo domina, o Tempo é o verdadeiro protagonista de todas as histórias. Mesmo uma fotografia tem tempo, não o que levamos a olhá-la, mas o que a separa do nosso olhar. Num momento algures no tempo, uma árvore foi observada, ou um rosto, ou um sorriso, ou uma cotovia levantando voo sobre um vinhedo. O olhar de um pintor prende esse momento numa tela, o olhar de um fotógrafo congela essa efemeridade num instantâneo, na vã ilusão de lhe conferirem perenidade. Noutro momento o nosso olhar cai sobre essa imagem, e cria-se uma nova realidade, mas é no intervalo entre os dois olhares que a história acontece. É esse intervalo que me fascina: a fermentação do mosto em vinho, a sublimação da paixão em amor, a transcrição do evento em História. Os factos têm apenas um interesse meramente nutritivo porque são exteriores à mente humana; o Tempo, e dentro do Tempo a imaginação, são a realidade possível, porque nos dão a ilusão de vivermos a vida. Na verdade, são a vida dentro de nós.
Não sei já onde soa o violino, se na vastidão dos vinhedos se dentro de mim, onde há de ficar para sempre, até que, caldeado pelo tempo, me seja devolvido como uma memória, despoletada não sei por que efémera realidade.
O Vale d'Aveia descendo até Vale de Cide numa vertigem de voo planado. O Vale d'Aveia subindo até à forma erógena do Buçaco. A tarde de Outono cheia de preguiça. O sol oblíquo a desenhar longas sombras sobre o vale e a pintar tudo de cobre e ouro. A alegria da ave. A melancolia do violino. Uma e outra, dentro de mim para sempre. Uma e outra como se as tivesse testemunhado ontem. O virtuosismo do Sr. Manuel da Leonarda ensinando uma cotovia a voar. Uma cotovia levantando voo para dar título à música. Há sem dúvida mundos maiores que a mera realidade.
Não sei já o que é real ou ilusório na minha memória. Mas na memória, aliás, toda a noção do real é ilusória, toda a dimensão do tempo é imaginária; resta-nos dar-lhes forma concreta através da arte, para tornar palpável este ciclo vicioso: facto – conceito; conceito – facto, isto é: a criação humana é a ilusão última. Nada mais fazemos do que fingirmos que é verdadeira a memória que guardámos do insuficiente entendimento do mundo. É isto que faz de nós seres efémeros, e no entanto, será o mais próximo que estaremos da eternidade.
O Vale d'Aveia desdobra-se encosta a baixo, cheia de retalhos, como uma manta de patch-work e sobe depois, azulado pela distância, até cobrir o corpo deitado da serra ao fundo. Não tanto, que não deixe a nu o seio da Serra do Buçaco, de mamilo erecto desenhado sobre a tela azul do céu. E uma cotovia pousa e levanta voo e pousa. E o violino a despejar torrentes de notas sobre o vale, a incitá-la, a chamá-la. Reconheço os fragmentos da música que o Sr. Manuel da Leonarda vem ensaiando há semanas: O Voo da Calhandra.
Vê-se que os dedos já estão desentorpecidos. Vê-se que o violino já está afinado como um veleiro de cordame tenso e velas retesadas pelo vento preparado para uma longa viagem. Finalmente um pequeno silêncio. Imagino o Sr. Manuel da Leonarda em frente da janela do quarto enchendo o peito de ar como um paraquedista a preparar-se para o salto sobre o vazio.
Onde se meteu a cotovia? Será que parou algures à espera do violino, como eu em cima do terraço da casa da adega? Apuro a atenção. Um fiozinho de som. Um cabelo levemente ondulado pela brisa. Um fumo, um aroma sonoro quase impercetível ao ouvido. Tão débil que não tenho a certeza de algo ter mudado em mim, senão por uma subtil sensação de leveza. Eu, e a cotovia ao fundo mais leve também. Ganha altura sobre o vinhedo como uma folha solta ao colo do vento.
O ar de final de Outono por sobre os vinhedos do Vale d'Aveia cria ondulações que não vejo, mas que sinto nitidamente no plexo solar. Uma rajada de pequeninas ondas sonoras vêm rebentar de encontro a mim. Na vertigem da paisagem que desce daqui até Vale de Cide, a cotovia ganha altura como se uma corrente de ar quente a elevasse, como se quisesse emergir da maré musical que já inunda o vale.
Do terraço da adega eu domino o vale com o olhar. Da janela do quarto o violino do Sr. Manuel da Leonarda domina-me a mim e ao vale, e a cotovia domina tudo. Tudo, não. Tudo, menos o Tempo, essa quarta dimensão, que para além da amplitude do meu olhar, da profundidade do vale e da altura da cotovia sobre os vinhedos, atravessa tudo e confere durabilidade, através da nossa memória, à consciência que temos das coisas. Mesmo para além da sua existência. Há um passo, uma cadência, uma grelha que baliza essa durabilidade, materializada na teia sonora que atravessa o ar, que me convida ao devaneio e que instiga uma cotovia a ganhar altura sobre o Vale d'Aveia.
O Tempo não é apenas o que tudo domina, o Tempo é o verdadeiro protagonista de todas as histórias. Mesmo uma fotografia tem tempo, não o que levamos a olhá-la, mas o que a separa do nosso olhar. Num momento algures no tempo, uma árvore foi observada, ou um rosto, ou um sorriso, ou uma cotovia levantando voo sobre um vinhedo. O olhar de um pintor prende esse momento numa tela, o olhar de um fotógrafo congela essa efemeridade num instantâneo, na vã ilusão de lhe conferirem perenidade. Noutro momento o nosso olhar cai sobre essa imagem, e cria-se uma nova realidade, mas é no intervalo entre os dois olhares que a história acontece. É esse intervalo que me fascina: a fermentação do mosto em vinho, a sublimação da paixão em amor, a transcrição do evento em História. Os factos têm apenas um interesse meramente nutritivo porque são exteriores à mente humana; o Tempo, e dentro do Tempo a imaginação, são a realidade possível, porque nos dão a ilusão de vivermos a vida. Na verdade, são a vida dentro de nós.
Não sei já onde soa o violino, se na vastidão dos vinhedos se dentro de mim, onde há de ficar para sempre, até que, caldeado pelo tempo, me seja devolvido como uma memória, despoletada não sei por que efémera realidade.
O Vale d'Aveia descendo até Vale de Cide numa vertigem de voo planado. O Vale d'Aveia subindo até à forma erógena do Buçaco. A tarde de Outono cheia de preguiça. O sol oblíquo a desenhar longas sombras sobre o vale e a pintar tudo de cobre e ouro. A alegria da ave. A melancolia do violino. Uma e outra, dentro de mim para sempre. Uma e outra como se as tivesse testemunhado ontem. O virtuosismo do Sr. Manuel da Leonarda ensinando uma cotovia a voar. Uma cotovia levantando voo para dar título à música. Há sem dúvida mundos maiores que a mera realidade.
Não sei já o que é real ou ilusório na minha memória. Mas na memória, aliás, toda a noção do real é ilusória, toda a dimensão do tempo é imaginária; resta-nos dar-lhes forma concreta através da arte, para tornar palpável este ciclo vicioso: facto – conceito; conceito – facto, isto é: a criação humana é a ilusão última. Nada mais fazemos do que fingirmos que é verdadeira a memória que guardámos do insuficiente entendimento do mundo. É isto que faz de nós seres efémeros, e no entanto, será o mais próximo que estaremos da eternidade.
04 fevereiro 2014
Desolação
Estou cansado. Não sei de onde me vem este cansaço.

O largo da Capela está vazio. Fazem-me falta os velhos sentados no banco corrido à frente da loja do Sr. Boanerges. Eles, cansados também, fitando a fachada da capela da Nossa Senhora do Ó como se estivessem a ver um filme enquanto falavam entre si.
Ia a caminho de Águeda e deu-me para subir o Barreiro e ficar aqui um bocado. E aqui estou eu como se estivesse a ver um filme projetado na fachada da capela. Parece mais nova a capela, mas o largo está vazio, e eu senti-me cansado de repente. Sinto-me como um marido arrependido, regressando a casa depois de um serão de orgias. Tudo parece olhar-me com uma falsa distração, não me dando atenção para me fazer sentir insignificante.
Pode trazer-se a fisionomia de um rosto, as estrofes de um poema, os compassos de uma música dentro de nós; eu trago a torre de uma capela.
Sinto-a nitidamente, erecta sobre a colina de Aguim, sobreposta a um céu de cetim quase limpo.
Uma pessoa vem ainda longe e a sua silhueta já nos faz sentir em casa, como se sentirão os mareantes ao verem ao longe o farol da Barra.
Desculpa ter chegado tarde, desculpa ter-me distraído com as horas. Saí para tomar um copo e quando dei por ela tinham passado trinta e tal anos.
Eu sei, eu sei. Foi a aventura que me levou, a viagem, a pior das vertigens: a guerra. Saí daqui para ir matar e morri por lá… nunca mais voltei de verdade porque entretanto já era outro.
Já nem sei se sou daqui, mas ao passar lá em baixo algo me chamou, como que a meter conversa sem ter assunto, e eu a fazer pisca para a direita… e agora deu-me para falar sozinho como um bêbado abandonado por lhe terem fechado a porta de casa.
Trago uma torre comigo. Sei a textura das pedras dos degraus em caracol. Sei o silêncio das pedras. A quietude das pedras. A temperatura das pedras. Testemunhas pacientes do Tempo. Eu a subi-las enquanto lá em baixo na nave da capela se rezava a missa. E eu a tentar ver o mar do patamar superior… Era bom, reconfortante, olhar o horizonte e saber que para lá do horizonte existia o mar, mesmo que não o visse dali; e ter essa certeza, como todas as outras certezas que eu tinha então, parece-me agora uma garantia de ter sido feliz.
Um dia fiz ali um pecado e não houve uma única daquelas pedras que me denunciasse; e Deus, não o que alguns homens criaram à sua imagem e semelhança, mas o impossível pai que todos gostaríamos de ter, a rir-se cúmplice, enquanto no Largo da Capela as bandas tocavam ao desafio.
Mas hoje o Largo da Capela está vazio, vazio como quando eu saía do meu quarto para ir brincar no Sobreirinho e os meus amigos já tinham ido todos embora. Para onde foram todos? Porque não me chamaram? O Faria, o Zé, o Rolo; que amigos são estes que me deixaram a brincar sozinho?
Hoje o Largo da Capela e o Sobreirinho parecem uma parede vazia onde sempre esteve um quadro, um escaparate sem um único livro, uma cómoda de gavetas abertas de onde levaram a roupa, uma estação de caminho de ferro deserta, depois de ter partido o último comboio. E eu com o desalento que só um filho único conhece, quando os seus amigos foram embora sem o terem chamado.
Eu amo uma torre que me pede de longe que pare. Que não siga viagem, que suba o Barreiro e entre na minha casa, mesmo que essa casa seja um templo de adoração a um deus que me é estranho.
Um farol que teima em dizer-me que eu sou daqui, que afinal os meus amigos estão todos à minha espera, que é apenas uma questão de tempo e logo nos sentaremos à mesma mesa com a desculpa de nos apetecer beber uns copos por causa do inocente pudor masculino de assumirmos os afetos.
Se fosse possível, quando for a minha vez de me juntar a eles, gostaria que me rezassem ali uma missa de corpo presente, mesmo que o meu corpo esteja noutro lado qualquer, que pedissem por mim a Deus mesmo sabendo toda a gente que eu fora ateu, ou, se não fosse pedir muito, que se reunissem ali cantando. Só para eu consumar este amor antigo. E por favor… que alguém se esgueire pelas escadas da torre e vá praticar o seu primeiro pecado enquanto na nave os meus amigos que ainda fiquem por cá se despeçam de mim.
O largo da Capela está vazio. Fazem-me falta os velhos sentados no banco corrido à frente da loja do Sr. Boanerges. Eles, cansados também, fitando a fachada da capela da Nossa Senhora do Ó como se estivessem a ver um filme enquanto falavam entre si.
Ia a caminho de Águeda e deu-me para subir o Barreiro e ficar aqui um bocado. E aqui estou eu como se estivesse a ver um filme projetado na fachada da capela. Parece mais nova a capela, mas o largo está vazio, e eu senti-me cansado de repente. Sinto-me como um marido arrependido, regressando a casa depois de um serão de orgias. Tudo parece olhar-me com uma falsa distração, não me dando atenção para me fazer sentir insignificante.
Pode trazer-se a fisionomia de um rosto, as estrofes de um poema, os compassos de uma música dentro de nós; eu trago a torre de uma capela.
Sinto-a nitidamente, erecta sobre a colina de Aguim, sobreposta a um céu de cetim quase limpo.
Uma pessoa vem ainda longe e a sua silhueta já nos faz sentir em casa, como se sentirão os mareantes ao verem ao longe o farol da Barra.
Desculpa ter chegado tarde, desculpa ter-me distraído com as horas. Saí para tomar um copo e quando dei por ela tinham passado trinta e tal anos.
Eu sei, eu sei. Foi a aventura que me levou, a viagem, a pior das vertigens: a guerra. Saí daqui para ir matar e morri por lá… nunca mais voltei de verdade porque entretanto já era outro.
Já nem sei se sou daqui, mas ao passar lá em baixo algo me chamou, como que a meter conversa sem ter assunto, e eu a fazer pisca para a direita… e agora deu-me para falar sozinho como um bêbado abandonado por lhe terem fechado a porta de casa.
Trago uma torre comigo. Sei a textura das pedras dos degraus em caracol. Sei o silêncio das pedras. A quietude das pedras. A temperatura das pedras. Testemunhas pacientes do Tempo. Eu a subi-las enquanto lá em baixo na nave da capela se rezava a missa. E eu a tentar ver o mar do patamar superior… Era bom, reconfortante, olhar o horizonte e saber que para lá do horizonte existia o mar, mesmo que não o visse dali; e ter essa certeza, como todas as outras certezas que eu tinha então, parece-me agora uma garantia de ter sido feliz.
Um dia fiz ali um pecado e não houve uma única daquelas pedras que me denunciasse; e Deus, não o que alguns homens criaram à sua imagem e semelhança, mas o impossível pai que todos gostaríamos de ter, a rir-se cúmplice, enquanto no Largo da Capela as bandas tocavam ao desafio.
Mas hoje o Largo da Capela está vazio, vazio como quando eu saía do meu quarto para ir brincar no Sobreirinho e os meus amigos já tinham ido todos embora. Para onde foram todos? Porque não me chamaram? O Faria, o Zé, o Rolo; que amigos são estes que me deixaram a brincar sozinho?
Hoje o Largo da Capela e o Sobreirinho parecem uma parede vazia onde sempre esteve um quadro, um escaparate sem um único livro, uma cómoda de gavetas abertas de onde levaram a roupa, uma estação de caminho de ferro deserta, depois de ter partido o último comboio. E eu com o desalento que só um filho único conhece, quando os seus amigos foram embora sem o terem chamado.
Eu amo uma torre que me pede de longe que pare. Que não siga viagem, que suba o Barreiro e entre na minha casa, mesmo que essa casa seja um templo de adoração a um deus que me é estranho.
Um farol que teima em dizer-me que eu sou daqui, que afinal os meus amigos estão todos à minha espera, que é apenas uma questão de tempo e logo nos sentaremos à mesma mesa com a desculpa de nos apetecer beber uns copos por causa do inocente pudor masculino de assumirmos os afetos.
Se fosse possível, quando for a minha vez de me juntar a eles, gostaria que me rezassem ali uma missa de corpo presente, mesmo que o meu corpo esteja noutro lado qualquer, que pedissem por mim a Deus mesmo sabendo toda a gente que eu fora ateu, ou, se não fosse pedir muito, que se reunissem ali cantando. Só para eu consumar este amor antigo. E por favor… que alguém se esgueire pelas escadas da torre e vá praticar o seu primeiro pecado enquanto na nave os meus amigos que ainda fiquem por cá se despeçam de mim.
14 janeiro 2010
As Cinco Estações do Ano em Aguim
1 - O Último Verão da Minha Inocência
Antes do alcatrão, o pó nas estradas e os pés das mulheres encortiçados ignorando as pedras. Eu olhando o meu mundo de criança rente ao chão; tudo visto de baixo para cima. A ouvir o restolho de uma cobra na erva, o sobressalto dos pássaros numa oliveira. A sentir a paciência das vinhas, quietas, a aguardarem que as uvas amadurecessem.
– Tudo a seu tempo.
A minha avó, especialista em paciência, compreendia as vinhas. Eu não: – Queria um cacho, vó.
– Tudo a seu tempo.
E eu desistia porque o Verão era longo.
Os adultos falavam de coisas estranhas. Falavam depressa de mais. E tinham sempre que fazer.
– Porque demorastes tanto, Zé?
E o meu pai: – Fui abicar as couves.
Só o meu avô se deixava às vezes ficar a fingir que dormia a sesta. A fingir: porque a mão enxotava as moscas como o rabo do cavalo. De vez em quando o cavalo resfolegava, amarrado à velha figueira, com o saco de ração pendurado nas orelhas para não ter de dobrar o pescoço para comer, e o meu avô com o máximo de ternura que lhe conheci: – O que é? – E ele acalmava-se. O meu avô falava frequentemente com o cavalo. Não admira, passavam muito tempo juntos.
As moscas inquietas, e zás, a mão a enxotá-las de um lado e o rabo do cavalo a enxotá-las do outro. O zumbido das moscas a fazer-me sono. E o restolho da erva. O sobressalto das oliveiras. A paciência das vinhas.
Às vezes, sem eu contar, havia festa e toda a gente deixava de trabalhar. Tudo cheirava de modo diferente. Eram os mesmos cheiros, mas mais alegres. As mulheres aperreavam os pés encortiçados em sapatos enormes, só por uma questão de elegância, o que lhes dava um andar torturado, e os homens usavam com orgulho uma tira de pano pendurada ao pescoço, elevada à categoria de gravata, e um raminho de limonete atrás da orelha para dar um toque de classe. Então é que eu notava que mal se lavavam, que apenas se desenxovalhavam. Passavam uma água pelo corpo, tiravam a maior, mas o encardido ficava. A marca do castigo, da labuta, da tortura habitual do trabalho. Tão habitual que havia um certo desassossego nos dias de festa, como se os corpos habituados ao esforço se sentissem descontrolados sem esse lastro pesado do trabalho.
As festas apanhavam-me sempre de surpresa. Num dia tudo tinha os mesmos vagares, e no outro tudo acordava eufórico, e, quando eu me habituava, lá voltava tudo inesperadamente à mesma rotina. Os cheiros acalmavam de novo, familiares de novo, como uma cama já afeita ao corpo.
O cheiro hormonal do cavalo, o cheiro nutritivo do estrume, o cheiro cáustico do lume, o cheiro acre da massa lêveda a fazer adivinhar o cheiro sem adjetivos supérfluos da boroa fresca.
Quando não fingia dormir o meu avô assobiava; só uma nota, incessante, distraída. Ele a olhar para um lado e as mãos a fazerem as coisas numa destreza mecânica para o outro. E o assobio sempre igual, só interrompido para tomar fôlego. Do outro lado da rua o Ti Zé Sécio batia, batia, assobiando também uma nota só. E o ferro gritava a cada marretada, e depois num arrepio cortante fazia ferver a água fria da pia ao lado da forja. Saía a chiar e sem fôlego daquela têmpera rude e o Ti Zé observava-o com minúcias de ourives e, às vezes insatisfeito, reiniciava a tortura.
O meu mundo por essa altura dividia-se em dois grupos de pessoas: os que passavam fome e os que tinham falta de apetite. Ora, se os que passavam fome nunca tinham falta de apetite, porque me torturavam em casa para eu comer? Eu olhava invejoso para a voracidade do Xico Pã. Ele mergulhava os dedos no barro e trazia para cima um pequeno tubérculo branco. – Experimenta, é uma zonzelha. – E eu surpreendido com o sabor picante a rabanete.
Zonzelhas no Barreiro e medronhos no Monte Grande, tâmaras no Sobreirinho e amoras em Vale de Cide. A fome era uma virtude.
Ele a devorar um tomate e a rir-se de me ver mordiscar o meu, cheio de escrúpulos.
Foge repentinamente sem eu perceber porquê. Eu pasmado a vê-lo ir embora, e só a perceber que o momento era de perigo ao ver a ira nos olhos do Sr. Luis Bandarra.
O tribunal na loja da minha mãe com o Sr. Luis a exibir o meu boné de palha como corpo de delito, e a apontar a minha camisa com a marca ensanguentada do crime. Eu a sentir-me o assassino de um tomate.
– O meu filho a comer tomates da horta? – A minha mãe confusa. – Mas ele é tão biqueiro… – Eu nem merecia castigo.
O meu pai ofendido na honra, de mão irrequieta, e as minhas orelhas a arder. O meu avô a defender-me só para contrariar toda a gente, e eu a jurar arrependimento de lágrimas manhosas.
– Vejam lá, uma amizade tão grande com o cachopo mais pobrezinho do lugar.
Ficou decidido: tudo se deveu às más companhias, e ficou toda a gente satisfeita. Só a mão do meu pai teimosa, com a minha mãe a segurá-la: – Ó Zé!
O meu amigo com alcunha de deus grego a roubar para matar a fome e a levar com as culpas pela minha cobardia. Eu sempre tão censurado pela minha falta de apetite a concluir finalmente que a fome não era uma virtude. Virtude era saltar o muro, e a ansiedade no meu estômago a confundir-se com a fome do meu amigo. Virtude era trepar a nespereira e comer as nêsperas mornas do sol. Virtude era estar alerta e fugir sem sequer ser visto – o Ti Mariano com a vara de picar os bois chegava sempre tarde.
Quem não guardar no cacifo da memória uma delinquência infantil não sabe verdadeiramente o que é ser feliz.
Mas às vezes as coisas paravam. As pessoas ganhavam um passo lento, inconsequente, as pernas sem saberem para onde se dirigirem, os olhos pasmados e as mãos inúteis, sem uma ocupação que lhes desse préstimo. Diziam-se frases consensuais, parcimoniosas, tão previsíveis que normalmente começavam por "Pois é…" A fatalidade punha as pessoas de acordo. Olhavam-se e encolhiam os ombros, porque todas as palavras possíveis eram escusadas e todas as outras eram inconvenientes. De vez em quando ouvia-se um "Coitado!" E depois o choro sem pudor. O desespero sem o constrangimento da etiqueta.
E por fim, tudo a sossegar de novo. Todos os sobressaltos a serem absorvidos pela rotina.
Eu olhava a parreira e as uvas ainda verdes. Que longo foi aquele Verão.
Um dia vieram uns homens e tiraram o telhado da cozinha. Assim, sem me avisarem. A gente a comer o escorrido e as estrelas por cima de nós. Às vezes passava um morcego a dar estalidos muito rápidos. A Lua e as estrelas a transformarem o meu jantar numa coisa sobrenatural.
A pequenez da cozinha do forno e toda a imensidão do universo. Será que vista das estrelas aquela mesa, com todas as pessoas que eu amava, ainda vivas à minha volta, pareceria igualmente sobrenatural?
Alguns dias depois, os homens vieram devolver o telhado, e eu levei uma semana a protestar por me terem tirado o céu.
Foi mais ou menos por essa altura que eu reparei na mudança do olhar. Os mesmos olhos, o mesmo olhar mas uma demora exagerada, uma atenção excessiva. As mãos também mais lentas, e o meu corpo a responder sem eu querer. Os gestos de sempre eram agora mais significativos, intencionais. Mas havia qualquer coisa de deslocado, de desconfortável, a querer tomar posse de algo em mim, algo ainda adormecido que reagia estremunhado a um prazer prematuro.
E tudo mudou repentinamente naquele verão. As uvas maduras na parreira do terraço a oferecerem-se em despudores de fêmea no cio, e eu, envergonhado com a minha confusão quanto às virtudes da fome e da gula, a tentar prender a minha atenção às tremuras do coiro do cavalo a reagir às moscas. A tentar perceber se o meu avô estava a dormir enquanto a mão imitava uma cauda a dar, a dar. Mas eu, na verdade, desatento, definitivamente desatento, ainda sem saber que nunca mais na minha vida conseguiria acertar o passo por aquele ritmo conformado, em que cada coisa ocupa apenas o seu lugar, e no tempo esperado. Em vez disso, um desassossego, uma urgência, uma inquietação; uma busca desnorteada de algo em falta mas inteiramente desconhecido. A descoberta da incompletude do corpo: o que dantes lhe era apenas adjacente e fraterno, era agora complementar e cúmplice – o pecado da fome.
Os arreganhos trocistas dos adultos a lerem os meus pensamentos. Tudo de repente tão divorciado, tão adverso, tão exterior a mim.
Por fim, como uma memória que se desvanece, a desidealização da Natureza: a erva sem mais bulício do que a passagem ocasional de um bicho, alguns pássaros nas oliveiras mudas, nada mais do que alguns pássaros.
E as vinhas? Perdera definitivamente naquele longo Verão, o sortilégio de me espantar com a paciência das vinhas.
2 - A Alquimia do Outono
Recordo esse tempo como quem olha para uma foto antiga que achou num baú velho.
Aquele ali sou eu, dizemos incrédulos por também termos sido crianças. Então temos a tendência irritante de dizer que fomos felizes nessa altura como nunca, desvalorizando tudo o que de bom aconteceu entretanto. Algumas pessoas, como se vê, chegam mesmo a escrever coisas sobre este assunto, como refúgio para as frustrações da idade madura.
Mas devo ter sido feliz, porque me lembro de estar deitado no chão a sentir o calor que parecia vir do próprio coração da Terra, e o cheiro da erva fresca acabada de pisar, e todo o azul que se pode imaginar, lá em cima; não como se tudo me pertencesse, mas como se eu pertencesse a tudo. E a voz da senhora do Porto a inventar histórias ali ao lado.
A senhora do Porto era uma velha, porque tinha mais de trinta anos, e era estrangeira porque tinha uma acentuada pronúncia do Norte; mas tinha o dom hipnótico de reunir à sua volta um bando de putos, que quando não jogavam à bola no Largo do Sobreirinho, todos contra todos para uma baliza só, entretinham-se a pôr em prática uma vertente extremista e ultra-radical do darwinismo, que consistia em matar cobras no Monte Grande, em pôr sapos a fumar com cigarros de barba de milho até estourarem, ou, quando tomavam banho na Lagoa do Olho, em fazer concursos de matar rãs à pedrada.
Devo ter sido mesmo feliz porque só me recordo de uma coisa que me ensombrou a infância, algo verdadeiramente incapacitante: não ser capaz de caminhar descalço.
– Olh'ó estapôr do cachopo que parece que vai todo engalicado. Pro qu'é que no calça o raça dos sapatos?
Aquele ali sou eu, a treinar a andar descalço pela estrada de Vale de Cide abaixo, duplamente envergonhado: por aquela figura ridícula de sapatos debaixo do braço, e por me dar a impressão que o chão eram só cacos de vidro, quando os meus amigos quase todos jogavam à bola descalços.
Mas depois chegava a senhora do Porto e passávamos para outra dimensão. As histórias começavam ainda na estrada, connosco a enxamear à sua volta calcando o finíssimo pó, mil vezes moído pelos aros das rodas dos carros de bois; e depois pelos campos fora, no convívio da miríade de insectos e vermes, de que a sociedade, amante dos produtos e valores liofilizados, ainda não nos ensinara a sentir nojo.
Entretanto, nos vinhedos do Solão, a alquimia do Outono transformava lentamente o verde das parras em cobre ou em ouro puro.
Depois da vindima em Aguim, colher uvas em vinha alheia deixava de ser roubo para ser rebusco, e os vindimadores deixavam de propósito algumas uvas de melhor qualidade para mais tarde as irem colher para si. Ora, toda a gente sabe que a necessidade que leva ao acto aguça normalmente o engenho, que por sua vez inspira a tolerância do julgador, mas nós antecipávamo-nos, sem respeito por esta regra da mais básica alquimia da justiça e pilhávamos os vinhedos em busca de um cacho ou ao menos de uma esgalha esquecida.
– Serafim, Serafim, s'eu achar é pra mim!
O Outono era o Verão cansado. Cada vez mais, a esturreira do sol dava lugar a um calor suportável, e ao fim da tarde o dia dava mostras de sonolência. E o calor que restava era um hálito morno que parecia vir mesmo das entranhas dos silvados e dos bosques. Até o canto nupcial das cega-regas se enchia de preguiça; ou então tinha sido bem-sucedido, e por essa hora já tinham passado das palavras à ação.
E os camponeses com passadas largas e lentas de enxada às costas. O corpo a descambar de cansaço. Passavam por nós, tão cansados que só diziam:
–Tarde!
Deixando que a entoação do cumprimento fizesse subentender a frase completa. E as mulheres atrás. Derreadas. Com grandes feixes de erva à cabeça e com um ar tão triste. Sempre vestidas de negro. Porque tinham sempre um ar triste as mulheres da minha terra? Às vezes riam como riem as crianças com fome: um pequeno intervalo na desgraça apenas, para depois continuarem a ser tristes. Nunca pensei nisto antes. Devo ter sido feliz, sim, porque nunca pensei nisto antes.
Quando deixou de vir a senhora do Porto ou quando deixei eu de a acompanhar? Não tenho a menor ideia. Talvez tenha sido na mesma altura em que aprendi a ter nojo dos bichos e das coisas da terra; ou tal como de um sonho, devo ter acordado apenas, para entrar noutras fantasias: para a puberdade, tão hormonal e prosaica como estúpida.
Um dia, na loja da senhora Idalina, vi-a a comprar uns chinelos de pano, que se destinavam a aproximar-se da empregada doméstica para poder espiá-la sem os seus passos serem ouvidos, e sofri um desgosto.
Com a senhora do Porto aprendi a dar valor às coisas até aí dadas como garantidas, por ter nascido no meio delas, mas que aos olhos de quem vê de fora são preciosidades; aprendi sobretudo a ver as coisas à minha volta para além da superfície e, na falta de uma história convincente para cada uma delas, simplesmente imaginar uma, porque a fantasia é que torna a vida sublime. E isso colocava a senhora do Porto numa esfera do meu imaginário onde não se fazem canalhices, e tudo quanto recebi dela era demasiado valioso para ser posto em causa por causa daquele pecado.
Nunca consegui resolver esse conflito: era impossível condená-la e era impossível absolvê-la. E a ela devo isso também: ganhei a capacidade de conceber o indivíduo na sua multiplicidade, de aceitar o anjo e a besta coabitando dentro de todos nós, isto é, de assumir humildemente a consciência da humana mediocridade.
3 - O Verão de São Martinho
Os cachos trincadeira e maria-gomes ao pendurão como úberes atraindo mosquitos e a minha gula. Daqui de cima, do sobrado que um dia será o primeiro andar da minha casa, pela porta que dá absurdamente para o telhado do alpendre, vejo lá em baixo um grupo de homens caminhando lentamente. Vêm do cemitério e vão em busca duma adega. Um ou dois malápios para fazer boca, e dois ou três copitos de vinho para molhar a goela. E logo se desfiam as maledicências, que na boca dos homens se disfarçam com um sarcasmo corrosivo e cruel, para não se confundirem com a alcoviteirice feminina, adocicada com meneios traiçoeiros; essa sim, obviamente manhosa e pérfida.
As primeiras chuvas como uma ameaça experimental, a ver se estamos distraídos, retiram, como se quisessem fazer negaças ao Inverno, e o sol esperançoso regressa. Os castanheiros da quinta do Sobreirinho de folhas afogueadas, de um castanho quase vermelho, e os plátanos a ganharem uma alegria nas copas cheias de sol, de um amarelo dourado, a sobressaírem ao verde, que em vários comprimentos de onda matizam o arvoredo em pano de fundo.
E no sobrado os santórios apurando sabores: os cachos ao pendurão, as peras em intumescimentos erógenos de puro açúcar e as bravo-de-esmolfe a perfumarem tudo, até metros e metros em redor.
Existe um encanto de doce decadência, nestes dias soalheiros que antecedem a força do Inverno, só comparável à beleza de uma mulher a lutar contra o murchar do viço: uma doçura serôdia de fruta madura, como os santórios no sobrado da minha casa.
E um último alento de energia efémera revigora o ar de calor e luz, num ressuscitar patético de moribundo.
Mas todos acreditamos nisso, porque nos apraz, porque nos convém; porque se não acreditamos nas ilusões, só nos resta a realidade, e a realidade é que o Inverno se seguirá à morte inelutável do Verão, ainda que ele se levante pelo São Martinho, com a derradeira coragem de um soldado ferido de morte para nos dar uma falsa esperança de vida.
4 - O Deslumbramento do Inverno
O cavaco de cerne fumarento preso na pinça da candeia de lata nunca deixava a Ti Maria Adôa às escuras.
As sombras assombrando as paredes.
A imagem de uma família humilde a comer as batatas da ceia sentada na minha memória para sempre. Um dia reconheci-a num quadro de Van Gogh.
Em minha casa a luz elétrica faltava sempre quando era mais precisa. Virá ainda hoje? Não virá? A incerteza à luz de uma vela é sempre mais vacilante, e as sombras do cavaco de cerne a mudarem-se para as paredes da minha cozinha.
Se não chovesse eu dava uma corrida até ao Rebelho para ver o Ti Zé Quiaios a manejar os fusíveis da cabine elétrica como um organista a puxar os registos de um órgão de igreja. O Ti Zé Quiaios era quase cego, com os olhos dilatados pelas lentes de cu de garrafa, mas as suas mãos tinham uma precisão de milímetros. Ou era ele que conhecia a cabine elétrica, ou então era a cabine que o conhecia a ele.
– Ai no auguentas? Espera aí que já cospes!
A ferramenta e a mão, o nervo e a eletricidade, a cegueira e a luz. Tudo tão irmanado. Tão afeiçoados um ao outro: homem e máquina. E Aguim iluminava-se por fases e apagava-se por fases, e os fusíveis a estourarem, e o Ti Zé Quiaios a reforçar os bornes. Uma luta. Não uma luta: um jogo. Um jogo não: um namoro, uma sedução mútua entre a tecnologia e a humanidade; porque nesse tempo a tecnologia casava com a humanidade.
Quando Aguim finalmente ganhava a cintilação dos presépios, o Ti Zé Quiaios regressava a casa dele vitorioso, e eu à minha deslumbrado.
Os invernos eram eternos. E dava a ideia que começavam sempre antes do tempo. Eternos, porque quando ainda não conhecemos suficientemente o presente, ele parece não ter fim; a eternidade é apenas a ignorância dos limites. Habituámo-nos ao Verão e de repente o tempo a tomar balanço no Outono para a chuva nos apanhar desprevenidos.
– Podia esperar que apanhássemos os cachos da Casqueira.
O meu avô e o clima poucas vezes estavam de acordo, mas o meu avô já sabia de mais para se deixar surpreender; só os inocentes têm esse privilégio.
O Inverno, na verdade, começava muitas vezes a meio do Outono, como a morte começa muitas vezes a meio da vida. Quando começamos a morrer? Sei lá! Mas há sempre uma primeira chuvada que nos estraga a vindima, uma chuvada que nos apanha sempre desprevenidos. Acho que era por isso que o meu avô não gostava do Inverno.
Vista do alpendre do pátio, a vida na rua era um filme.
O Ti F'lipe batendo com um maço na madeira e transformando uma molhada de aduelas numa pipa de vinho. O novo aprendiz de pé sobre um dos tampos a segurar as aduelas pelo interior como uma margarida de pétalas abertas, enquanto por fora o Ti F'lipe as ia fechando. Quando a margarida se fechava, nascia uma tulipa de madeira que surpreendia o aprendiz, preso lá dentro aos berros.
O Ti Zé Sécio com uma enorme tenaz encaixava um aro em brasa numa roda de um carro de bois. Batia-lhe com o malho à vez com dois ajudantes. O fogo a dilatar o ferro, os malhos a domá-lo e a água a contraí-lo em torno da roda; tudo envolto em fumo, vapor e algazarra.
O Ti Antóino Mateus dedilhando os vimes como um tocador de harpa, e quem havia de dizer que aquela harpa de vimes ia acabar num poceiro para a vindima!
Tudo tão vivo, tudo tão animado. Uma coreografia que olhada assim de perto parecia não ter outro propósito que deslumbrar o meu olhar. Mas olhando de perto nunca se percebe bem o propósito da vida; só muitos anos mais tarde percebi tudo numa ópera de Verdi.
No enquadramento do portão, Aguim desfilava num traveling rápido, com uma banda sonora ao vivo. O Ti Zé Sécio ferreiro nos metais, o Ti F'lipe tanoeiro nas madeiras e o Ti Antóino Mateus cesteiro nas cordas. E a voz de falsete da moça serrana a fazer as camas de lavado sob o olhar oblíquo do meu avô. – Andas-me muito delambida… – Enquanto passava a carda com vagares de barbeiro no lombo do cavalo.
Aos primeiros pingos, a chuva fazia acelerar o filme do portão do pátio, com as pessoas a fugirem e a falarem mais alto, mas logo a abrandarem de novo conformadas. Um saco de estopa com um dos cantos encaixado para dentro do outro, e pronto, aí está um capote reforçado. A chuva molhava à mesma mas pelo menos dava-se-lhe luta.
E nisto o assombro dos trovões. A minha avó a dizer uma ladainha elevando a voz à medida que a trovoada aumentava, não fosse Santa Bárbara não ouvir bem por causa do barulho, e a confirmar se a cruz de alecrim benzida no Dia de Ramos estava atrás da porta para afastar todos os agouros.
E resultava, porque a trovoada afastava-se e ia fazer barulho para outro lado. E depois ficava a chuva apenas, e o som da chuva parecia silêncio.
– Ela é cá precisa.
– Podia esperar que apanhássemos os cachos da Casqueira.
– Este ano vai ter menos grau.
– Pró ano começamos mais cedo.
As conversas à lareira da cozinha do forno só faziam sentido para os adultos. Falavam para si próprios como se estivessem sós, mas cientes de que se falassem todos a mesmo tempo, as várias solidões se uniriam para criar uma confraternidade. Mas eu acho que era o encantamento do lume na lareira que tornava aquelas sombras taciturnas nos rostos luminosos da minha família. O lume a fazer gemer as cavacas molhadas. Às vezes um estalido e os tições a aconchegarem-se uns aos outros. E a trovoada tão longe, agora que a ladainha da minha avó era só por mera precaução um simples tremelicar dos lábios.
Dias e dias, noites e noites, sem parar. A chuva era eterna também. Passada a surpresa, as coisas permaneciam para ficar, não davam um único indício de que teriam um fim. Havia lagos no Largo do Sobreirinho e rios que desaguavam na minha valeta. A água era uma constante à face da terra.
Mas uma noite, todo aquele dilúvio acalmava como um pranto de viúva esgotada de mágoa e resignada ao vazio do corpo.
Primeiro começava por nos surpreender o silêncio. O silêncio é o que ouvimos quando termina um ruído. Agora o silêncio era o xilofone das gotas grossas dos beirais a baterem nas latas à porta da oficina do Ti Zé Sécio. O vento norte foi-se embora desvairado pelo Caminho dos Poços abaixo e a noite sossegava finalmente. E logo mais, a madrugada acordava sem outro sobressalto que a brisa a trazer consigo os primeiros frios.
Um vidro a cobrir a água do tanque, a bomba de alavanca que não deitava uma gota, o cavalo a resfolegar na cavalariça, os gatos em novelos pelos cantos e a minha mãe a enchouriçar-me de roupa. Eu tinha que caminhar de braços e pernas abertas por causa das várias camadas de pano que me transformavam numa cebola ambulante.
– Cuidado com as correntes de ar.
Em minha casa nunca havia duas portas abertas ao mesmo tempo. Para mudar de divisão tínhamos os cuidados de um mergulhador na câmara de descompressão de um submarino.
Em breve o frio e a geada passavam a ser eternos também.
E lá faltava a luz de novo.
Logo aparecia uma vela acesa, mas quase tudo ficava na escuridão, porém, as coisas importantes sobressaíam a esta luz. Acho que é daí que vem a crença que é mais romântica. Se foi esta incapacidade de ver para além de certos limites que nos permitiu criar a conceção de infinito, foi ela também que nos permitiu criar a da intimidade. Se não, de onde me vem esta ideia de que jantávamos abraçados uns aos outros?
E a luz voltou. Apagávamos a vela e as baratas regressavam ao pátio. E quando nos preparávamos para continuar a ceia, voltava a falhar a luz e acendíamos a vela de novo.
E eu imaginava o Ti Zé Quiaios quase cego enrolando e desenrolando fios nos bornes dos fusíveis, pontificando do seu púlpito da mais avançada tecnologia a eterna luta entre a luz e as trevas, e a dizer sentencioso: – Ai no auguentas? Espera aí que já cospes!
5 - O Recobro da Primavera
A chuva a atormentar as folhas da laranjeira, e dentro de casa a ideia que o mundo é diferente: um conforto de mantas e escalfetas e a ausência do vento, só a chuva impotente de encontro às vidraças. O Inverno acaba por passar para os corpos. Os pés e as mãos a escaldarem em frente do lume e um frio cá dentro ainda. O rádio a crepitar estalidos com uma música de piano lá no fundo, tão no fundo, que parecem dois mundos também, o dos ruídos e o da música.
A minha mãe de termómetro na mão a ler o tamanho da minha gripe. O meu pai à porta, à espera de ler nos olhos dela o que ela lê no tubinho de vidro. E depois eu a ler nos olhos dele o que ele leu nos dela.
A minha mãe sacode a minha gripe do tubinho. Sacode, sacode e olha desanimada para o meu pai.
– 39!
– 39?!
– 39.
Esta casa é tão alegre quando não chove. Na sala, os retratos de antepassados defuntos não me tiram os olhos de cima, mas quando não chove nascem flores no cachepô da mesa.
Agora a chuva lá fora a criar bolor nas paredes cá dentro, a humidade a desenhar figuras nas paredes.
Olhando de certa maneira:
– Um cão, mãe.
De outra:
– Uma pomba.
– É a febre, meu filho.
Devia faltar pouco para o Carnaval, porque chegada a noite, lá fora, alguém usava um funil de almude como megafone para lançar pulhas ao namorado de uma vizinha, enquanto um coro ao lado uivava a cada provocação:
– É verdade! É verdade!
E na sala, os defuntos pendurados nas paredes sem tirarem os olhos de mim.
Muitos anos mais tarde, haveria de substituir os retratos todos por telas sujas de tinta com títulos inteligentes para serem tomados por obras de arte. E a minha mãe dividida entre a saudade dos olhos dos defuntos e o afeto pelas minhas manchas de tinta.
Mas nessa altura, ainda, os olhos da minha bisavó, pendurada na parede acima da cómoda, a olharem-me pela frincha da porta. E a aflição das folhas da laranjeira. E os dedos esqueléticos da figueira a lutarem com o vento. E o inverno no interior do corpo, embora tanto calor no rosto. E a minha avó a insultar a gripe:
– Aquela cadela que não o larga!
O sono era um delírio com as cores da vigília em negativo. Só que o quarto não tinha paredes e a mesma imagem teimosa a repetir-se vezes sem conta: um rio de tintas escuras e eu a afogar-me, a afogar-me. Depois desapareceu tudo e passou uma eternidade. Ou um instante, tanto faz; quando se perde a noção do tempo, tanto faz.
Acordei.
E quando acordei, a cabeça tão leve, uma dorzinha de fome tão boa, os sons da rua a enfeitarem o silêncio, uma voz que se aproxima lentamente, tão lentamente. Que passa e continua lentamente, tão lentamente.
As pessoas vão-se levantando e os ruídos da casa repentinos, estremunhados.
Alguma coisa mudou no mundo e não foi só a minha febre, a minha dor de cabeça, a preguiça que me dissolvia todos os músculos do corpo. Sinto uma lucidez que me vem de fora. Da luz que altera as cores do quarto, dos sons que parecem decididos.
Tudo parece ter um propósito qualquer.
Havia um ruído indeciso que desapareceu. Havia uma velatura amorfa que se dissolveu. Uma humidade pesada que enxugou, deixando a superfície das coisas nítida e sólida.
Mas a luz ainda húmida.
Um dedo da figueira toca na vidraça um código de morse a anunciar que algo alegre se aproxima.
Não havia mais música que o som da bigorna do Ti Zé e o perfilar das vozes que vinham todas do lugar e se dirigiam todas para o campo. Primeiro só algumas madrugadoras sem pressa, depois em maior número como um coro no compasso certo, e por fim as tardias, que passavam quase a correr. Não havia mais música do que isso, e se houvesse seria de mais, porque uma alegria amanhecia no corpo, uma euforia de festa que entrava com a luz da janela e que tornaria toda a música desnecessária.
A minha mãe à porta num júbilo de puérpera a ver-me despertar. A minha avó arrependida da imprecação da véspera:
– Aquela cadela! Que deus me perdoe.
O meu pai a aliviar da memória o agouro da pneumónica e a lutar com uma lágrima embaraçosa.
Em breve eu livre dos abafos e das portas fechadas. Em breve a corrida por entre as vozes dos meus pares como um coelho entre coelhos, como um pardal entre pardais.
Será que só retive o essencial ou era tudo verde? Recordo quando muito uns pingos de amarelo sobre o trevo, e umas erupções de púrpura na bungavília que enfeitava com as suas flores de papel o muro do Senhor Afonso Bandarra. Ali, eu sabia um ninho de pintassilgo. Sabia eu e o gato da Ti Maria Adôa.
Uma madrugada, os gravetos e a penugem no chão e uma pintassilga quieta num ramo. Uma comoção de pólen no nariz e lágrimas de alergia nos olhos; ou então, eu a entender o júbilo de puérpera da minha mãe.
Nada acontecia de especial em Aguim quando chegava a Primavera. Tirando o arraial do São José. Uma festa meio cristã meio pagã. As bandas a tocarem ao despique e uma parelha de cavadores a desenterrarem a Pedra-da-sesta.
Mas quando a Pedra-da-sesta ficava ali à espera da festa do Castro para ser enterrada de novo e os coretos, desfeitos no chão em despojos de palmas e açucenas, davam a ideia de que se travara ali um combate, regressava o sentimento de que todo o som era quase música, e que mais música seria de mais; a não ser, às vezes em dias muito especiais, quando o Sr. Manuel da Leonarda decidia acompanhar ao violino o concerto do Ti Zé na bigorna.
Nada acontecia de especial porque o Sol fazia a festa sozinho. Que tinha o Sol da minha infância que nunca mais o vi assim? Nascia mesmo por detrás do Monte Grande e já vinha em festa, e punha-se ainda alegre atrás da torre da capela.
À noite apetecia dormir e de manhã apetecia acordar. Tudo estava certo na Primavera.
Na verdade, tudo me parece ter estado certo nesse tempo. É costume, quando se olha o que já aconteceu, porque as coisas más já não podem fazer-nos mal; como quando olhamos pelo retrovisor desvalorizando as derrapagens perigosas que fizemos e amando já a estrada percorrida.
E nesta viagem em que parei algumas vezes para corporizar esse amor, as cidades foram as minhas verdadeiras amantes: Coimbra, a mulher tricana de todos os meus dias. Lisboa, a promíscua, tão fiel de dia e tão infiel de noite. Hamburgo, a altiva, com as suas cicatrizes de guerra a ensinar-me que há vida depois da morte. Mueda, a grande prostituta, onde desci ao mais baixo patamar da humanidade, que me levou quase tudo e que apesar disso me deixou, não sei em que parte de mim, um amor fatal e doloroso. E Aguim. Aguim trigueira, tisnada do sol, elevada sobre uma colina para parecer mais alta, onde tudo o que há em mim nasceu.
Nasceram as palavras na sua pronúncia um tanto abrupta no início das frases e cantada nas vogais finais, e, onde não havia vogais, a acrescentar um i.
Nasceu a música. O violino velho do meu pai de onde só saía o som dorido da única corda sobreviva, e o milagre da metamorfose do ruído em música, quando em dias especiais o violino do Sr. Manuel da Leonarda transformava a bigorna do Ti Zé Sécio no mais glorioso timbale que se pode conceber.
Nasceu esta minha fidelidade de rafeiro doméstico pelos meus amigos, que julgava tão poucos, e afinal muitos; tanto que, vão morrendo já e continuam meus amigos.
E nasceu esta minha paixão de gato vadio pelos becos e pelos telhados, pela tessitura prolixa das cidades e pelo deslumbramento da Natureza; tanto quanto me lembro, desde que via o Sol a erguer-se por detrás do Monte Grande já em festa e ainda convalescente do Inverno.
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14 setembro 2009
A Carta
Não tenho nada para fazer hoje. Não tenho nenhum livro para ler, nenhuma música para ouvir. Apetecia-me escrever uma carta a alguém. Alguém que vivesse do outro lado do mar. Alguém que já se tivesse esquecido de mim há muito, e que ao receber a carta parasse num leve sorriso de surpresa. O envelope com a minha caligrafia e a carta lá dentro.
– De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Nada importante. Uma carta minha que tivesse levado quinze minutos a escrever e quinze dias a chegar. Queria interromper a vida de alguém com uma carta que não fosse importante, que essa pessoa guardasse no bolso para ler mais tarde, quando tivesse tempo, e se esquecesse disso, e deixasse no bolso do casaco durante muito tempo, e mais tarde, num dia em que não tivesse nada para fazer, nem um livro para ler, nem uma música para ouvir, se lembrasse repentinamente que ainda não a tinha lido, e a fosse procurar por todo o lado numa ansiedade de quem busca uma coisa que se tornou valiosa só porque não se sabe do seu paradeiro.
A letra a azul sobre o papel creme, letra de caneta de tinta permanente, de caligrafia esmerada, aqui e ali a esborratar um pouco, e a assinatura no fim. Uma assinatura tentada no ar em jeito de ensaio antes de a desenhar no papel, rápida e agilmente.
Nada de importante. Apenas uma carta de alguém que se conhece mal ou que já se esqueceu quase totalmente. Queria escrever uma carta assim. Uma carta sem uma notícia urgente, sem um pedido desesperado, sem uma declaração de amor, sem a intenção de cumprir sequer uma formalidade.
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Os olhos preguiçosos a verem o corpo do texto sobre o papel, sem lerem ainda. Do lado esquerdo impecavelmente alinhado e do lado direito sem respeitar a margem. Às vezes ultrapassando-a para escrever a palavra toda, apertando as letras, outras vezes, por julgar que não cabia, deixando um espaço excessivo.
Os olhos preguiçosos pousam na assinatura antes de lerem o texto. Um leve sorriso sarcástico.
– Quem será mesmo esse meu primo português que faz uma assinatura tão pretensiosa numa carta informal.
Queria escrever uma carta a alguém. Cumprindo um ritual. Ao fundo na Elísio de Moura o som dos carros no asfalto molhado resgatam-me, não sei de que memórias, a lembrança do mar. A cadência das ondas como um pulsar de desalento irremissível. Uma coisa tristíssima sem motivo nenhum. A minha avó a dar um ai que parecia a alma a rasgar. – Que tristeza é essa 'vó? – Não estou triste meu filho, é o hábito. Os carros a passarem na Elísio de Moura como se a tristeza da minha avó fosse um hábito tão grande que agora enche os momentos de tédio em que me apetece escrever uma carta por não ter nada que fazer.
A carta nas mãos de alguém do outro lado do mar. Uma varanda sobre a vegetação tropical e uma carta que ainda está para ser lida. Uma carta de quem sentiu a solidão da noite e um apelo irresistível para comunicar com alguém. Não uma pessoa íntima que sabe quase tudo de nós. Não uma completa estranha que não quer saber nada de nós. Uma pessoa a quem a carta desperte para uma memória desvanecida de mim, que não se surpreenda com as minhas palavras, mas sim com o meu interesse em dizer alguma coisa.
O senhor Luís da Loja vinha de bicicleta entregar o correio e fazia soar a corneta apertando o punho de borracha à porta dos destinatários. Um toque prolongado como uma lamúria e dois breves e alegres no fim. Naqueles três toques ele resumia o teor de todas as cartas; as notícias dolorosas que perduram mais tempo na memória, e as notícias boas que deixam um breve lampejo de felicidade, como se fosse obrigatória a felicidade, e não tivéssemos que nos sentir gratos por ela. O senhor Luís da Loja conhecia o remetente e o destinatário de todas as cartas, sabia de todos os encontros e desencontros da vida dos correspondentes; era como o médico de família da saudade. – Uma carta do seu filho; quer que lha leia? E os olhos analfabetos a sorrirem. – Sim, p'la alma dos seus, qu'eu no sê uma letra. Que diz ele?
Não queria que recebessem de mim uma carta assim. Não queria despertar sentimentos fortes em ninguém. Queria apenas pousar de leve na vida de alguém, chegar e partir como uma brisa, como uma folha solta trazida pela aragem e que deixa uma breve sombra na leitura de um jornal, que distrai de uma dor por um minuto, que alivia uma mágoa ou quebra um riso. Que despertasse apenas uma breve curiosidade, que levasse apenas a um ténue esforço de memória para alguém se lembrar de mim e me imaginasse a escrever a carta, não como eu a tivesse escrito realmente, mas como a sua imaginação me recriasse a fazê-lo, de modo a que eu passasse a ser apenas um produto da sua fantasia, e assim, me tornasse em algo íntimo. Íntimo, mas sem a partilha física dos corpos, sem a mútua devassa dos afetos.
Já escrevi cartas de todas as maneiras, até sobre o carregador de uma arma, só pela urgência de dar a saber que estava vivo. É muito diferente escrever de casa para alguém que está longe, não sabemos bem onde, e escrever de longe, de onde não sabem de nós. Onde nós também não sabemos bem de nós. A mata misteriosa a separar-nos de tudo o que nos é familiar, e o apelo para comunicar com quem nos tem no pensamento. A vontade de responder a perguntas que não ouvimos, mas que sabemos terem-nos sido formuladas. Perguntas de que nos chega o significado mais profundo, mas não as palavras que o transportam. E o apelo para responder, justamente as palavras, as palavras que faltam, porque o significado é sobejamente conhecido. Depois o prazer de desenhar as palavras no papel. O conforto das palavras escritas, físicas, quase tangíveis, a darem densidade à imaterialidade dos sentimentos.
Mas agora, nesta noite em que o computador me avisa que recebi mais um e-mail ou alguém me chama no Messenger, queria sentar-me na pequena mesa tosca e acanhada de onde via os fogos-fátuos no cemitério de Aguim num fim de tarde de verão, e escrever uma carta para uma pessoa que mal me conhecesse, e que ficasse surpresa por eu ter mandado notícias, não por mim, não por ela, não pelo que dissesse; apenas porque isso implicaria uma certa dedicação, uma certa humanidade numa cadeia de esforços de várias pessoas para que a carta chegasse ao destino.
O cabo de dia a ler em voz alta o nome de um soldado, e um braço alegre a pegar no aerograma. Os olhos sem conseguirem ler devido à ansiedade. As palavras escritas por todo o papel amarelo do aerograma e depois a apertarem para o fim, para caberem mais, e nas margens também, porque as despedidas são sempre difíceis, mesmo quando são feitas de tinta sobre papel. Agora os olhos sem conseguirem ler devido às lágrimas desfocarem tudo. Aquelas palavras sempre tão iguais, sempre tão previsíveis, mas a despertarem sempre a emoção da surpresa.
Outro e-mail a chegar. Um contacto a chamar-me no Messenger. Este falso dom de ubiquidade que temos ao contactar em simultâneo para vários lugares do mundo. Todos em contacto com todos, para todo o lado, a toda a hora, sem aparente intermediação.
O cabo de dia a ler para si o nome do soldado Lourenço. Um soluço a calar a voz. Boas notícias e nenhum braço alegre. Os soldados calados a guardarem luto. O cabo de dia passa para baixo o aerograma que era para o Lourenço e continua a chamar os soldados um a um.
A pior coisa que se pode escrever é uma carta para um soldado já morto. Quando o aerograma chegar devolvido por não ter encontrado o soldado Lourenço haverá alguém como o Sr. Luís da Loja que fará soar uma corneta? Alguém como o médico de família da saudade a dizer: "Uma carta do seu filho"?
O som dos carros no asfalto molhado ao fundo da avenida a resgatarem-me o som do mar do fundo da memória, como algo irremissível, e eu a pegar na velha caneta de tinta permanente e a escrever: Cara prima,…
Quem sabe, talvez daqui a quinze dias do outro lado do mar, alguém como o senhor Luís da Loja, a buzinar a bicicleta:
– Tem uma carta pra você do exterior. De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
– De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Nada importante. Uma carta minha que tivesse levado quinze minutos a escrever e quinze dias a chegar. Queria interromper a vida de alguém com uma carta que não fosse importante, que essa pessoa guardasse no bolso para ler mais tarde, quando tivesse tempo, e se esquecesse disso, e deixasse no bolso do casaco durante muito tempo, e mais tarde, num dia em que não tivesse nada para fazer, nem um livro para ler, nem uma música para ouvir, se lembrasse repentinamente que ainda não a tinha lido, e a fosse procurar por todo o lado numa ansiedade de quem busca uma coisa que se tornou valiosa só porque não se sabe do seu paradeiro.
A letra a azul sobre o papel creme, letra de caneta de tinta permanente, de caligrafia esmerada, aqui e ali a esborratar um pouco, e a assinatura no fim. Uma assinatura tentada no ar em jeito de ensaio antes de a desenhar no papel, rápida e agilmente.
Nada de importante. Apenas uma carta de alguém que se conhece mal ou que já se esqueceu quase totalmente. Queria escrever uma carta assim. Uma carta sem uma notícia urgente, sem um pedido desesperado, sem uma declaração de amor, sem a intenção de cumprir sequer uma formalidade.
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Os olhos preguiçosos a verem o corpo do texto sobre o papel, sem lerem ainda. Do lado esquerdo impecavelmente alinhado e do lado direito sem respeitar a margem. Às vezes ultrapassando-a para escrever a palavra toda, apertando as letras, outras vezes, por julgar que não cabia, deixando um espaço excessivo.
Os olhos preguiçosos pousam na assinatura antes de lerem o texto. Um leve sorriso sarcástico.
– Quem será mesmo esse meu primo português que faz uma assinatura tão pretensiosa numa carta informal.
Queria escrever uma carta a alguém. Cumprindo um ritual. Ao fundo na Elísio de Moura o som dos carros no asfalto molhado resgatam-me, não sei de que memórias, a lembrança do mar. A cadência das ondas como um pulsar de desalento irremissível. Uma coisa tristíssima sem motivo nenhum. A minha avó a dar um ai que parecia a alma a rasgar. – Que tristeza é essa 'vó? – Não estou triste meu filho, é o hábito. Os carros a passarem na Elísio de Moura como se a tristeza da minha avó fosse um hábito tão grande que agora enche os momentos de tédio em que me apetece escrever uma carta por não ter nada que fazer.
A carta nas mãos de alguém do outro lado do mar. Uma varanda sobre a vegetação tropical e uma carta que ainda está para ser lida. Uma carta de quem sentiu a solidão da noite e um apelo irresistível para comunicar com alguém. Não uma pessoa íntima que sabe quase tudo de nós. Não uma completa estranha que não quer saber nada de nós. Uma pessoa a quem a carta desperte para uma memória desvanecida de mim, que não se surpreenda com as minhas palavras, mas sim com o meu interesse em dizer alguma coisa.
O senhor Luís da Loja vinha de bicicleta entregar o correio e fazia soar a corneta apertando o punho de borracha à porta dos destinatários. Um toque prolongado como uma lamúria e dois breves e alegres no fim. Naqueles três toques ele resumia o teor de todas as cartas; as notícias dolorosas que perduram mais tempo na memória, e as notícias boas que deixam um breve lampejo de felicidade, como se fosse obrigatória a felicidade, e não tivéssemos que nos sentir gratos por ela. O senhor Luís da Loja conhecia o remetente e o destinatário de todas as cartas, sabia de todos os encontros e desencontros da vida dos correspondentes; era como o médico de família da saudade. – Uma carta do seu filho; quer que lha leia? E os olhos analfabetos a sorrirem. – Sim, p'la alma dos seus, qu'eu no sê uma letra. Que diz ele?
Não queria que recebessem de mim uma carta assim. Não queria despertar sentimentos fortes em ninguém. Queria apenas pousar de leve na vida de alguém, chegar e partir como uma brisa, como uma folha solta trazida pela aragem e que deixa uma breve sombra na leitura de um jornal, que distrai de uma dor por um minuto, que alivia uma mágoa ou quebra um riso. Que despertasse apenas uma breve curiosidade, que levasse apenas a um ténue esforço de memória para alguém se lembrar de mim e me imaginasse a escrever a carta, não como eu a tivesse escrito realmente, mas como a sua imaginação me recriasse a fazê-lo, de modo a que eu passasse a ser apenas um produto da sua fantasia, e assim, me tornasse em algo íntimo. Íntimo, mas sem a partilha física dos corpos, sem a mútua devassa dos afetos.
Já escrevi cartas de todas as maneiras, até sobre o carregador de uma arma, só pela urgência de dar a saber que estava vivo. É muito diferente escrever de casa para alguém que está longe, não sabemos bem onde, e escrever de longe, de onde não sabem de nós. Onde nós também não sabemos bem de nós. A mata misteriosa a separar-nos de tudo o que nos é familiar, e o apelo para comunicar com quem nos tem no pensamento. A vontade de responder a perguntas que não ouvimos, mas que sabemos terem-nos sido formuladas. Perguntas de que nos chega o significado mais profundo, mas não as palavras que o transportam. E o apelo para responder, justamente as palavras, as palavras que faltam, porque o significado é sobejamente conhecido. Depois o prazer de desenhar as palavras no papel. O conforto das palavras escritas, físicas, quase tangíveis, a darem densidade à imaterialidade dos sentimentos.
Mas agora, nesta noite em que o computador me avisa que recebi mais um e-mail ou alguém me chama no Messenger, queria sentar-me na pequena mesa tosca e acanhada de onde via os fogos-fátuos no cemitério de Aguim num fim de tarde de verão, e escrever uma carta para uma pessoa que mal me conhecesse, e que ficasse surpresa por eu ter mandado notícias, não por mim, não por ela, não pelo que dissesse; apenas porque isso implicaria uma certa dedicação, uma certa humanidade numa cadeia de esforços de várias pessoas para que a carta chegasse ao destino.
O cabo de dia a ler em voz alta o nome de um soldado, e um braço alegre a pegar no aerograma. Os olhos sem conseguirem ler devido à ansiedade. As palavras escritas por todo o papel amarelo do aerograma e depois a apertarem para o fim, para caberem mais, e nas margens também, porque as despedidas são sempre difíceis, mesmo quando são feitas de tinta sobre papel. Agora os olhos sem conseguirem ler devido às lágrimas desfocarem tudo. Aquelas palavras sempre tão iguais, sempre tão previsíveis, mas a despertarem sempre a emoção da surpresa.
Outro e-mail a chegar. Um contacto a chamar-me no Messenger. Este falso dom de ubiquidade que temos ao contactar em simultâneo para vários lugares do mundo. Todos em contacto com todos, para todo o lado, a toda a hora, sem aparente intermediação.
O cabo de dia a ler para si o nome do soldado Lourenço. Um soluço a calar a voz. Boas notícias e nenhum braço alegre. Os soldados calados a guardarem luto. O cabo de dia passa para baixo o aerograma que era para o Lourenço e continua a chamar os soldados um a um.
A pior coisa que se pode escrever é uma carta para um soldado já morto. Quando o aerograma chegar devolvido por não ter encontrado o soldado Lourenço haverá alguém como o Sr. Luís da Loja que fará soar uma corneta? Alguém como o médico de família da saudade a dizer: "Uma carta do seu filho"?
O som dos carros no asfalto molhado ao fundo da avenida a resgatarem-me o som do mar do fundo da memória, como algo irremissível, e eu a pegar na velha caneta de tinta permanente e a escrever: Cara prima,…
Quem sabe, talvez daqui a quinze dias do outro lado do mar, alguém como o senhor Luís da Loja, a buzinar a bicicleta:
– Tem uma carta pra você do exterior. De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
28 janeiro 2009
O Mistério da Foto da Capelinha de S. José

O sótão da casa da adega é um amontoado de lixo. E este amontoado de lixo é a arqueologia da minha vida. Objetos mortos; amortalhados de pó. Cadáveres de objetos. Objetos quietos no tempo à espera que os esqueçam de vez, para que possam finalmente dissolver-se na terra mãe de onde vieram.
Avanço furtivamente, com o sentimento de quem profana um túmulo. Afasto as teias de aranha que parecem panos impregnados com a alma do tempo, e que boleiam a forma dos objetos, como um lençol cobrindo um cadáver.
Sopro o pó de uma enchó do meu avô, e ela parece que acorda, ganhando humanidade. Um foicinho da minha avó. Uma podôa do meu pai. Um bastidor da minha mãe. Sem a mortalha de pó, ressuscitam e parece que procuram as mãos dos donos, as mãos que calejaram, as mãos que os moldaram a eles. Não são objetos em série, são objetos feitos pelo uso, que ganharam o jeito do dono; noutras mãos seriam maljeitosos. Eram prolongamentos dos braços, como próteses ortopédicas; partes sobrevivas dos meus antepassados.
Caiu-me à frente uma caixa de papel levantando uma nuvem de pó.
Quando a nuvem de pó se dissipou, um grupo de pessoas olhou-me de frente. Imóveis. À medida que os meus olhos procuram os pormenores da fotografia, parece que se movimentam um pouco.
A sua imobilidade dá-lhes um ar sarcástico, parecendo desafiar-me, e dou por mim a pretender apanhá-los na fraqueza de um movimento. Desvio o olhar para uma mancha do papel e volto a prestar-lhes atenção. Esta disputa demora uns segundos; o suficiente para se tornar uma patetice. Mas não consigo dominar-me. Os meus olhos traem¬ me e voltam sempre àquele jogo, como que atraídos por aquelas figuras que parecem zombar de mim, olhando-me como um friso de espectadores estáticos mas atentos, em frente do palco; suspensos da ação que decorre aqui, onde eu, o ator, devesse dizer a próxima fala, efetuar o próximo movimento.
Há um pormenor da fotografia que acaba por me prender a atenção. A posição carinhosa e protetora do meu avô, segurando-me pelos ombros. O meu avô tinha uma má relação com os seus sentimentos. Não era homem de grandes manifestações de afeto, o que lhe valeu a alcunha de Vinagre. Lembro-me que me embalava cantando canções obscenas; e essas canções são a única manifestação de afeto de que me recordo. Vê-lo assim naquela atitude carinhosa e protetora faz¬ -me subir um novelo de saudade, lentamente até à garganta, vindo não sei de que memórias.
O céu ao fundo, entre as árvores, está reduzido a uma ausência de cor, devido ao monocromatismo esquálido da fotografia.
Envolvendo a capela, algumas oliveiras evitam que a fotografia pareça despida. Os ramos pararam para sempre, alheios à aragem da tarde de verão.
Sim, é de tarde porque as sombras projetam-se para nascente, e é verão porque o meu avô está de camisa de manga arregaçada. Os ramos das oliveiras pararam para toda a eternidade quando o clique da máquina se fez ouvir.
Não é um clique. É o som da cortina, do obturador e do diafragma da máquina em acorde, antes de ser substituído pelo estalido insípido das máquinas digitais. Aquele ruído que fazia com que as pessoas se descontraíssem da pose forçada que mantiveram durante os últimos preparativos do fotógrafo. Mas não se descontraem logo, respiram fundo primeiro, olham umas para as outras e depois é que mudam de posição, como se não fosse permitido ficarem como estavam depois da foto tirada. De seguida as conversas interrompidas continuam pouco a pouco a reformularem-se.
O fotógrafo é amador; um fotógrafo profissional fotografaria o grupo mais de perto, para se conhecerem melhor as pessoas, ou mais de longe para não cortar o pináculo da capela que tem uma estranha forma de flecha com uma cruz em cima.
O fotógrafo é seguramente o meu tio brasileiro, porque só ele reuniria parentes afastados para uma fotografia; para levar como recordação quando voltasse para o Brasil.
O fotógrafo afastou-se um pouco para a direita, muito pouco, só o suficiente para não cair num buraco que está no chão. Atrás do buraco está uma enorme pedra com cerca de meio metro de altura, de forma vagamente paralelepipédica.
Isto não aparece na fotografia; nem nesta, nem em nenhuma outra que eu tenha visto, decerto, devido ao baixo valor estético que os fotógrafos veem naquele conjunto. E por acharem uma falta de bom senso manter-se assim uma pedra daquele tamanho com um buraco à frente, durante todo o verão; desde o dia de S. José, em março, até ao dia da Nossa Senhora das Febres, em setembro, mesmo em frente da capelinha.
Através dos séculos um culto celta veio desaguar assim na minha infância. Um aras onde um druida pontificava a adoração à deusa Eostre, ou um menir, fálico e imponente, celebrando a fecundação da terra, ou uma antes alinhada com o ponto exato em que o equinócio da primavera daria nascimento ao Novo Ano Solar, mal a linha do horizonte partisse a meio o disco do sol.
Um ritual desgastado pela viagem penosa através dos tempos, resistindo a todos os invasores, a todos os novos cultos, à ciência, à técnica… a tudo, até restar esta reminiscência resgatada da vizinha povoação abandonada de Vila Franca, acompanhando a imagem de S. José, resgatada também, quando morreu o último habitante que teimava em acender todos os dias o lume na lareira da sua casa, na povoação assombrada já pelos insuportáveis silêncios dos ausentes.
E, um dia, cumprindo a mais brutal lei da Natureza, essa reminiscência que a tanto resistiu, acabou finalmente por sucumbir.
Sucumbiu à arrogância dos ignorantes e à prepotência dos espíritos pragmáticos, de quem alia as tradições populares à falta de desenvolvimento.
Enquanto estava assim desenterrada, já só servia para marcar a época, de equinócio a equinócio, em que os mais humildes de entre os humildes podiam descansar os seus corpos da fadiga; dos rigores da labuta nos campos e da crueldade do estio, nalguma sombra que a Natureza, mais próxima deles, lhes oferecesse com compaixão, impondo-se à distante e estúpida inclemência dos homens, a mesma inclemência estúpida que lhe deu fim, reduzindo finalmente esse falo monolítico à total impotência, estilhaçado em brita, e enterrado definitiva e ingloriamente, debaixo de uma camada de alcatrão.
O poder local ganhou mais umas eleições e a terra ficou viúva.
Embora fora de cena, a pedra da sesta aguarda ali, um pouco atrás do fotógrafo, a festa da Nossa Senhora das Febres, em setembro, para ser enterrada. A festa que mais se aproxima do novo equinócio, depois de o Sol ter cumprido a sua incansável missão de mostrar aos homens as etapas do tempo.
Então terminará mais uma etapa para os humildes, a do descanso depois do almoço; ou melhor, depois do jantar, que assim se chamava a segunda refeição do dia em Aguim, pois a bucha é parca mas é comida com orgulho, e as palavras, se não alteram a essência das coisas, podem até fazer-nos crer que chega para empanturrar o estômago, aquilo que na realidade não enche a cova de um dente.
O almoço é de manhã, com o resto da ceia da véspera, e por isso não é, nem lhe chamam pequeno, que a enxada é pesada e não se mexe sozinha.
O enterramento da pedra é um ato pouco festivo. A festa é em Anadia, aqui parece mais um funeral; ou não se tratasse de oficializar a perda de um direito laboral, o descanso da sesta.
No dia de S. José, a 19 de março, é uma festa dentro de outra festa. Os jazes, como começam a ser chamados os pequenos grupos musicais em que os metais veem substituindo os acordeões e os instrumentos de corda, ficam a tocar sozinhos ao despique, nos coretos do Largo do Sobreirinho, e as pessoas veem juntar-se em torno da entrada da capelinha para assistir a uma outra competição: uma parelha de cavadores tenta superar em rapidez os que no ano anterior desenterraram a pedra da sesta.
E ela ali está ainda, fora do enquadramento da fotografia, ela e o seu buraco, aguardando o equinócio do outono para fecundar a terra que há de germinar no próximo equinócio da primavera.
A mancha do Arvoredo apenas salpica a margem esquerda da fotografia. O Arvoredo não é um arvoredo, é o Arvoredo. O substantivo comum ganhou dignidade de topónimo ou até de nome próprio. Se procurar entre as páginas dos meus sonhos de infância, a silhueta daquelas árvores são o papel de cenário de todas as minhas aventuras imaginadas.
Neste dia não era domingo, nem feriado, apesar das roupas domingueiras. Era dia de festa, porque o meu avô está de gravata. E como sempre, com a cabeça inclinada para o lado. Progressivamente passou a incliná-la também um pouco para trás, o que lhe dava, não sei porquê, um ar importante. Aparece assim, em todas as fotografias que lhe conheço, com aquele torcicolo patriarcal.
As crianças, no primeiro plano da fotografia, têm blusas brancas, por ser um dia especial. Um dia de festa em pleno verão. Seguramente era dia da N.ª Sr.ª do Ó.
As crianças não olham para a máquina para ficarem na fotografia. A fotografia para elas ainda era uma arte desconhecida, por isso, não dão qualquer importância ao fotógrafo, não olham para a máquina como esperaríamos de quaisquer crianças; estão mais interessadas naquele grupo de pessoas que ficaram quietas e caladas de repente, e viradas todas para o mesmo lado.
Alguma coisa, no entanto, chama subitamente a atenção de uma das jovens que estão sentadas no primeiro degrau. Deve ser suficientemente interessante, para uma delas chamar a atenção da outra, que no momento crucial da fotografia esquece a pose e olha para trás.
Quisera ser eu que tivesse passado na estrada, e quisera ter despertado, eu, a atenção daquelas jovens. Um olhar apenas, através dos tempos. Eu da idade delas, a caminhar despreocupado, com um fato de festa também, e elas a desviarem o olhar, do fotógrafo para mim, a estragarem a pose porque eu passei na estrada, a cochicharem um segredinho, a sorrirem uma cumplicidade, a incendiarem uma provocação. Tudo em menos de um pestanejar. Uma sinfonia inteira numa única nota.
O som dos foguetes distrai-me o suficiente para que avance demais e não consiga corresponder com naturalidade àquele olhar. Continuo o meu caminho em direção à banda de música que em breve toma conta da rua. Dirige-se para casa de um dos mordomos do ano que vem que os aguarda com vinho e chanfana e vai receber um foguete que guardará como testemunho.
O grupo de pessoas a posar para a fotografia abandonou a pose e aproxima-se para ver melhor a banda.
A minha avó veste roupas muito claras, o que assegura que ainda vivem todos quantos ama. A minha mãe... a minha mãe é muito jovem…
É jovem demais…
É jovem demais, para ser eu quem o meu avô segura pelos ombros...
A banda e toda aquela gente passam por mim, como a água de um rio, que avança contornando, indiferente, os obstáculos. Passam por mim, as pessoas e o tempo, que eu não pertenço a este tempo, ainda não nasci; sou um fantasma de um tempo futuro que olha especado para o passado congelado numa fotografia.
De súbito as formas ganham opacidade. Deixam de ser representações de pessoas e árvores, e regressam à sua condição primária de manchas de tinta sobre o papel; e eu sinto o pânico de Narciso traído pelo Tempo, ao descobrir, não a minha imagem envelhecida sobre o lago, mas a imagem de um estranho no meu lugar; que nunca conheci, que jamais conhecerei; que me rouba o carinho póstumo do meu avô. Uma história a que não pertenço. Um lugar e um tempo irremediavelmente estranhos para mim.
Reponho a foto na caixa de papel como quem fecha a tampa de um caixão, para impedir que um cadáver me assombre.
Só a luz do Sol me restitui a confiança, no terraço da casa da adega. Paro um pouco a olhar o casario e a Capelinha de S. José ao fundo.
Ali, um dia, alguém tirou aquela foto à minha família antes de eu ter nascido, antes de eu ter os privilégios de filho único. Um momento no tempo em que tudo existia do mesmo modo, mas sem mim, e em que tudo fazia sentido na mesma. Sinto-me um mero acidente na inexorável consumição do tempo.
Um leve percalço, e tudo teria levado um rumo diferente, um rumo que não me incluiria neste mundo.
E a realidade constrói-se-me sem mistério nenhum, sem transcendência, sem poesia sequer. Eu, ou qualquer outro no meu lugar, não faz a menor diferença.
Parto dali como um proscrito. Fujo em busca de alguém que me conheça. Alguém que me assegure a existência com um átimo da sua atenção; porque só o afeto que recebemos nos garante que não somos apenas um acidente irrelevante; um rosto desconhecido numa foto antiga.
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