14 setembro 2009

A Carta


Não tenho nada para fazer hoje. Não tenho nenhum livro para ler, nenhuma música para ouvir. Apetecia-me escrever uma carta a alguém. Alguém que vivesse do outro lado do mar. Alguém que já se tivesse esquecido de mim há muito, e que ao receber a carta parasse num leve sorriso de surpresa. O envelope com a minha caligrafia e a carta lá dentro.
– De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Nada importante. Uma carta minha que tivesse levado quinze minutos a escrever e quinze dias a chegar. Queria interromper a vida de alguém com uma carta que não fosse importante, que essa pessoa guardasse no bolso para ler mais tarde, quando tivesse tempo, e se esquecesse disso, e deixasse no bolso do casaco durante muito tempo, e mais tarde, num dia em que não tivesse nada para fazer, nem um livro para ler, nem uma música para ouvir, se lembrasse repentinamente que ainda não a tinha lido, e a fosse procurar por todo o lado numa ansiedade de quem busca uma coisa que se tornou valiosa só porque não se sabe do seu paradeiro.
A letra a azul sobre o papel creme, letra de caneta de tinta permanente, de caligrafia esmerada, aqui e ali a esborratar um pouco, e a assinatura no fim. Uma assinatura tentada no ar em jeito de ensaio antes de a desenhar no papel, rápida e agilmente.
Nada de importante. Apenas uma carta de alguém que se conhece mal ou que já se esqueceu quase totalmente. Queria escrever uma carta assim. Uma carta sem uma notícia urgente, sem um pedido desesperado, sem uma declaração de amor, sem a intenção de cumprir sequer uma formalidade.
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Os olhos preguiçosos a verem o corpo do texto sobre o papel, sem lerem ainda. Do lado esquerdo impecavelmente alinhado e do lado direito sem respeitar a margem. Às vezes ultrapassando-a para escrever a palavra toda, apertando as letras, outras vezes, por julgar que não cabia, deixando um espaço excessivo.
Os olhos preguiçosos pousam na assinatura antes de lerem o texto. Um leve sorriso sarcástico.
– Quem será mesmo esse meu primo português que faz uma assinatura tão pretensiosa numa carta informal.
Queria escrever uma carta a alguém. Cumprindo um ritual. Ao fundo na Elísio de Moura o som dos carros no asfalto molhado resgatam-me, não sei de que memórias, a lembrança do mar. A cadência das ondas como um pulsar de desalento irremissível. Uma coisa tristíssima sem motivo nenhum. A minha avó a dar um ai que parecia a alma a rasgar. – Que tristeza é essa 'vó? – Não estou triste meu filho, é o hábito. Os carros a passarem na Elísio de Moura como se a tristeza da minha avó fosse um hábito tão grande que agora enche os momentos de tédio em que me apetece escrever uma carta por não ter nada que fazer.
A carta nas mãos de alguém do outro lado do mar. Uma varanda sobre a vegetação tropical e uma carta que ainda está para ser lida. Uma carta de quem sentiu a solidão da noite e um apelo irresistível para comunicar com alguém. Não uma pessoa íntima que sabe quase tudo de nós. Não uma completa estranha que não quer saber nada de nós. Uma pessoa a quem a carta desperte para uma memória desvanecida de mim, que não se surpreenda com as minhas palavras, mas sim com o meu interesse em dizer alguma coisa.
O senhor Luís da Loja vinha de bicicleta entregar o correio e fazia soar a corneta apertando o punho de borracha à porta dos destinatários. Um toque prolongado como uma lamúria e dois breves e alegres no fim. Naqueles três toques ele resumia o teor de todas as cartas; as notícias dolorosas que perduram mais tempo na memória, e as notícias boas que deixam um breve lampejo de felicidade, como se fosse obrigatória a felicidade, e não tivéssemos que nos sentir gratos por ela. O senhor Luís da Loja conhecia o remetente e o destinatário de todas as cartas, sabia de todos os encontros e desencontros da vida dos correspondentes; era como o médico de família da saudade. – Uma carta do seu filho; quer que lha leia? E os olhos analfabetos a sorrirem. – Sim, p'la alma dos seus, qu'eu no sê uma letra. Que diz ele?
Não queria que recebessem de mim uma carta assim. Não queria despertar sentimentos fortes em ninguém. Queria apenas pousar de leve na vida de alguém, chegar e partir como uma brisa, como uma folha solta trazida pela aragem e que deixa uma breve sombra na leitura de um jornal, que distrai de uma dor por um minuto, que alivia uma mágoa ou quebra um riso. Que despertasse apenas uma breve curiosidade, que levasse apenas a um ténue esforço de memória para alguém se lembrar de mim e me imaginasse a escrever a carta, não como eu a tivesse escrito realmente, mas como a sua imaginação me recriasse a fazê-lo, de modo a que eu passasse a ser apenas um produto da sua fantasia, e assim, me tornasse em algo íntimo. Íntimo, mas sem a partilha física dos corpos, sem a mútua devassa dos afetos.
Já escrevi cartas de todas as maneiras, até sobre o carregador de uma arma, só pela urgência de dar a saber que estava vivo. É muito diferente escrever de casa para alguém que está longe, não sabemos bem onde, e escrever de longe, de onde não sabem de nós. Onde nós também não sabemos bem de nós. A mata misteriosa a separar-nos de tudo o que nos é familiar, e o apelo para comunicar com quem nos tem no pensamento. A vontade de responder a perguntas que não ouvimos, mas que sabemos terem-nos sido formuladas. Perguntas de que nos chega o significado mais profundo, mas não as palavras que o transportam. E o apelo para responder, justamente as palavras, as palavras que faltam, porque o significado é sobejamente conhecido. Depois o prazer de desenhar as palavras no papel. O conforto das palavras escritas, físicas, quase tangíveis, a darem densidade à imaterialidade dos sentimentos.
Mas agora, nesta noite em que o computador me avisa que recebi mais um e-mail ou alguém me chama no Messenger, queria sentar-me na pequena mesa tosca e acanhada de onde via os fogos-fátuos no cemitério de Aguim num fim de tarde de verão, e escrever uma carta para uma pessoa que mal me conhecesse, e que ficasse surpresa por eu ter mandado notícias, não por mim, não por ela, não pelo que dissesse; apenas porque isso implicaria uma certa dedicação, uma certa humanidade numa cadeia de esforços de várias pessoas para que a carta chegasse ao destino.
O cabo de dia a ler em voz alta o nome de um soldado, e um braço alegre a pegar no aerograma. Os olhos sem conseguirem ler devido à ansiedade. As palavras escritas por todo o papel amarelo do aerograma e depois a apertarem para o fim, para caberem mais, e nas margens também, porque as despedidas são sempre difíceis, mesmo quando são feitas de tinta sobre papel. Agora os olhos sem conseguirem ler devido às lágrimas desfocarem tudo. Aquelas palavras sempre tão iguais, sempre tão previsíveis, mas a despertarem sempre a emoção da surpresa.
Outro e-mail a chegar. Um contacto a chamar-me no Messenger. Este falso dom de ubiquidade que temos ao contactar em simultâneo para vários lugares do mundo. Todos em contacto com todos, para todo o lado, a toda a hora, sem aparente intermediação.
O cabo de dia a ler para si o nome do soldado Lourenço. Um soluço a calar a voz. Boas notícias e nenhum braço alegre. Os soldados calados a guardarem luto. O cabo de dia passa para baixo o aerograma que era para o Lourenço e continua a chamar os soldados um a um.
A pior coisa que se pode escrever é uma carta para um soldado já morto. Quando o aerograma chegar devolvido por não ter encontrado o soldado Lourenço haverá alguém como o Sr. Luís da Loja que fará soar uma corneta? Alguém como o médico de família da saudade a dizer: "Uma carta do seu filho"?
O som dos carros no asfalto molhado ao fundo da avenida a resgatarem-me o som do mar do fundo da memória, como algo irremissível, e eu a pegar na velha caneta de tinta permanente e a escrever: Cara prima,…
Quem sabe, talvez daqui a quinze dias do outro lado do mar, alguém como o senhor Luís da Loja, a buzinar a bicicleta:
– Tem uma carta pra você do exterior. De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.


28 janeiro 2009

O Mistério da Foto da Capelinha de S. José


O sótão da casa da adega é um amontoado de lixo. E este amontoado de lixo é a arqueologia da minha vida. Objetos mortos; amortalhados de pó. Cadáveres de objetos. Objetos quietos no tempo à espera que os esqueçam de vez, para que possam finalmente dissolver-se na terra mãe de onde vieram.
Avanço furtivamente, com o sentimento de quem profana um túmulo. Afasto as teias de aranha que parecem panos impregnados com a alma do tempo, e que boleiam a forma dos objetos, como um lençol cobrindo um cadáver.
Sopro o pó de uma enchó do meu avô, e ela parece que acorda, ganhando humanidade. Um foicinho da minha avó. Uma podôa do meu pai. Um bastidor da minha mãe. Sem a mortalha de pó, ressuscitam e parece que procuram as mãos dos donos, as mãos que calejaram, as mãos que os moldaram a eles. Não são objetos em série, são objetos feitos pelo uso, que ganharam o jeito do dono; noutras mãos seriam maljeitosos. Eram prolongamentos dos braços, como próteses ortopédicas; partes sobrevivas dos meus antepassados.
Caiu-me à frente uma caixa de papel levantando uma nuvem de pó.
Quando a nuvem de pó se dissipou, um grupo de pessoas olhou-me de frente. Imóveis. À medida que os meus olhos procuram os pormenores da fotografia, parece que se movimentam um pouco.
A sua imobilidade dá-lhes um ar sarcástico, parecendo desafiar-me, e dou por mim a pretender apanhá-los na fraqueza de um movimento. Desvio o olhar para uma mancha do papel e volto a prestar-lhes atenção. Esta disputa demora uns segundos; o suficiente para se tornar uma patetice. Mas não consigo dominar-me. Os meus olhos traem¬ me e voltam sempre àquele jogo, como que atraídos por aquelas figuras que parecem zombar de mim, olhando-me como um friso de espectadores estáticos mas atentos, em frente do palco; suspensos da ação que decorre aqui, onde eu, o ator, devesse dizer a próxima fala, efetuar o próximo movimento.
Há um pormenor da fotografia que acaba por me prender a atenção. A posição carinhosa e protetora do meu avô, segurando-me pelos ombros. O meu avô tinha uma má relação com os seus sentimentos. Não era homem de grandes manifestações de afeto, o que lhe valeu a alcunha de Vinagre. Lembro-me que me embalava cantando canções obscenas; e essas canções são a única manifestação de afeto de que me recordo. Vê-lo assim naquela atitude carinhosa e protetora faz¬ -me subir um novelo de saudade, lentamente até à garganta, vindo não sei de que memórias.
O céu ao fundo, entre as árvores, está reduzido a uma ausência de cor, devido ao monocromatismo esquálido da fotografia.
Envolvendo a capela, algumas oliveiras evitam que a fotografia pareça despida. Os ramos pararam para sempre, alheios à aragem da tarde de verão.
Sim, é de tarde porque as sombras projetam-se para nascente, e é verão porque o meu avô está de camisa de manga arregaçada. Os ramos das oliveiras pararam para toda a eternidade quando o clique da máquina se fez ouvir.
Não é um clique. É o som da cortina, do obturador e do diafragma da máquina em acorde, antes de ser substituído pelo estalido insípido das máquinas digitais. Aquele ruído que fazia com que as pessoas se descontraíssem da pose forçada que mantiveram durante os últimos preparativos do fotógrafo. Mas não se descontraem logo, respiram fundo primeiro, olham umas para as outras e depois é que mudam de posição, como se não fosse permitido ficarem como estavam depois da foto tirada. De seguida as conversas interrompidas continuam pouco a pouco a reformularem-se.
O fotógrafo é amador; um fotógrafo profissional fotografaria o grupo mais de perto, para se conhecerem melhor as pessoas, ou mais de longe para não cortar o pináculo da capela que tem uma estranha forma de flecha com uma cruz em cima.
O fotógrafo é seguramente o meu tio brasileiro, porque só ele reuniria parentes afastados para uma fotografia; para levar como recordação quando voltasse para o Brasil.
O fotógrafo afastou-se um pouco para a direita, muito pouco, só o suficiente para não cair num buraco que está no chão. Atrás do buraco está uma enorme pedra com cerca de meio metro de altura, de forma vagamente paralelepipédica.
Isto não aparece na fotografia; nem nesta, nem em nenhuma outra que eu tenha visto, decerto, devido ao baixo valor estético que os fotógrafos veem naquele conjunto. E por acharem uma falta de bom senso manter-se assim uma pedra daquele tamanho com um buraco à frente, durante todo o verão; desde o dia de S. José, em março, até ao dia da Nossa Senhora das Febres, em setembro, mesmo em frente da capelinha.
Através dos séculos um culto celta veio desaguar assim na minha infância. Um aras onde um druida pontificava a adoração à deusa Eostre, ou um menir, fálico e imponente, celebrando a fecundação da terra, ou uma antes alinhada com o ponto exato em que o equinócio da primavera daria nascimento ao Novo Ano Solar, mal a linha do horizonte partisse a meio o disco do sol.
Um ritual desgastado pela viagem penosa através dos tempos, resistindo a todos os invasores, a todos os novos cultos, à ciência, à técnica… a tudo, até restar esta reminiscência resgatada da vizinha povoação abandonada de Vila Franca, acompanhando a imagem de S. José, resgatada também, quando morreu o último habitante que teimava em acender todos os dias o lume na lareira da sua casa, na povoação assombrada já pelos insuportáveis silêncios dos ausentes.
E, um dia, cumprindo a mais brutal lei da Natureza, essa reminiscência que a tanto resistiu, acabou finalmente por sucumbir.
Sucumbiu à arrogância dos ignorantes e à prepotência dos espíritos pragmáticos, de quem alia as tradições populares à falta de desenvolvimento.
Enquanto estava assim desenterrada, já só servia para marcar a época, de equinócio a equinócio, em que os mais humildes de entre os humildes podiam descansar os seus corpos da fadiga; dos rigores da labuta nos campos e da crueldade do estio, nalguma sombra que a Natureza, mais próxima deles, lhes oferecesse com compaixão, impondo-se à distante e estúpida inclemência dos homens, a mesma inclemência estúpida que lhe deu fim, reduzindo finalmente esse falo monolítico à total impotência, estilhaçado em brita, e enterrado definitiva e ingloriamente, debaixo de uma camada de alcatrão.
O poder local ganhou mais umas eleições e a terra ficou viúva.
Embora fora de cena, a pedra da sesta aguarda ali, um pouco atrás do fotógrafo, a festa da Nossa Senhora das Febres, em setembro, para ser enterrada. A festa que mais se aproxima do novo equinócio, depois de o Sol ter cumprido a sua incansável missão de mostrar aos homens as etapas do tempo.
Então terminará mais uma etapa para os humildes, a do descanso depois do almoço; ou melhor, depois do jantar, que assim se chamava a segunda refeição do dia em Aguim, pois a bucha é parca mas é comida com orgulho, e as palavras, se não alteram a essência das coisas, podem até fazer-nos crer que chega para empanturrar o estômago, aquilo que na realidade não enche a cova de um dente.
O almoço é de manhã, com o resto da ceia da véspera, e por isso não é, nem lhe chamam pequeno, que a enxada é pesada e não se mexe sozinha.
O enterramento da pedra é um ato pouco festivo. A festa é em Anadia, aqui parece mais um funeral; ou não se tratasse de oficializar a perda de um direito laboral, o descanso da sesta.
No dia de S. José, a 19 de março, é uma festa dentro de outra festa. Os jazes, como começam a ser chamados os pequenos grupos musicais em que os metais veem substituindo os acordeões e os instrumentos de corda, ficam a tocar sozinhos ao despique, nos coretos do Largo do Sobreirinho, e as pessoas veem juntar-se em torno da entrada da capelinha para assistir a uma outra competição: uma parelha de cavadores tenta superar em rapidez os que no ano anterior desenterraram a pedra da sesta.
E ela ali está ainda, fora do enquadramento da fotografia, ela e o seu buraco, aguardando o equinócio do outono para fecundar a terra que há de germinar no próximo equinócio da primavera.
A mancha do Arvoredo apenas salpica a margem esquerda da fotografia. O Arvoredo não é um arvoredo, é o Arvoredo. O substantivo comum ganhou dignidade de topónimo ou até de nome próprio. Se procurar entre as páginas dos meus sonhos de infância, a silhueta daquelas árvores são o papel de cenário de todas as minhas aventuras imaginadas.
Neste dia não era domingo, nem feriado, apesar das roupas domingueiras. Era dia de festa, porque o meu avô está de gravata. E como sempre, com a cabeça inclinada para o lado. Progressivamente passou a incliná-la também um pouco para trás, o que lhe dava, não sei porquê, um ar importante. Aparece assim, em todas as fotografias que lhe conheço, com aquele torcicolo patriarcal.
As crianças, no primeiro plano da fotografia, têm blusas brancas, por ser um dia especial. Um dia de festa em pleno verão. Seguramente era dia da N.ª Sr.ª do Ó.
As crianças não olham para a máquina para ficarem na fotografia. A fotografia para elas ainda era uma arte desconhecida, por isso, não dão qualquer importância ao fotógrafo, não olham para a máquina como esperaríamos de quaisquer crianças; estão mais interessadas naquele grupo de pessoas que ficaram quietas e caladas de repente, e viradas todas para o mesmo lado.
Alguma coisa, no entanto, chama subitamente a atenção de uma das jovens que estão sentadas no primeiro degrau. Deve ser suficientemente interessante, para uma delas chamar a atenção da outra, que no momento crucial da fotografia esquece a pose e olha para trás.
Quisera ser eu que tivesse passado na estrada, e quisera ter despertado, eu, a atenção daquelas jovens. Um olhar apenas, através dos tempos. Eu da idade delas, a caminhar despreocupado, com um fato de festa também, e elas a desviarem o olhar, do fotógrafo para mim, a estragarem a pose porque eu passei na estrada, a cochicharem um segredinho, a sorrirem uma cumplicidade, a incendiarem uma provocação. Tudo em menos de um pestanejar. Uma sinfonia inteira numa única nota.
O som dos foguetes distrai-me o suficiente para que avance demais e não consiga corresponder com naturalidade àquele olhar. Continuo o meu caminho em direção à banda de música que em breve toma conta da rua. Dirige-se para casa de um dos mordomos do ano que vem que os aguarda com vinho e chanfana e vai receber um foguete que guardará como testemunho.
O grupo de pessoas a posar para a fotografia abandonou a pose e aproxima-se para ver melhor a banda.
A minha avó veste roupas muito claras, o que assegura que ainda vivem todos quantos ama. A minha mãe... a minha mãe é muito jovem…
É jovem demais…
É jovem demais, para ser eu quem o meu avô segura pelos ombros...
A banda e toda aquela gente passam por mim, como a água de um rio, que avança contornando, indiferente, os obstáculos. Passam por mim, as pessoas e o tempo, que eu não pertenço a este tempo, ainda não nasci; sou um fantasma de um tempo futuro que olha especado para o passado congelado numa fotografia.
De súbito as formas ganham opacidade. Deixam de ser representações de pessoas e árvores, e regressam à sua condição primária de manchas de tinta sobre o papel; e eu sinto o pânico de Narciso traído pelo Tempo, ao descobrir, não a minha imagem envelhecida sobre o lago, mas a imagem de um estranho no meu lugar; que nunca conheci, que jamais conhecerei; que me rouba o carinho póstumo do meu avô. Uma história a que não pertenço. Um lugar e um tempo irremediavelmente estranhos para mim.
Reponho a foto na caixa de papel como quem fecha a tampa de um caixão, para impedir que um cadáver me assombre.
Só a luz do Sol me restitui a confiança, no terraço da casa da adega. Paro um pouco a olhar o casario e a Capelinha de S. José ao fundo.
Ali, um dia, alguém tirou aquela foto à minha família antes de eu ter nascido, antes de eu ter os privilégios de filho único. Um momento no tempo em que tudo existia do mesmo modo, mas sem mim, e em que tudo fazia sentido na mesma. Sinto-me um mero acidente na inexorável consumição do tempo.
Um leve percalço, e tudo teria levado um rumo diferente, um rumo que não me incluiria neste mundo.
E a realidade constrói-se-me sem mistério nenhum, sem transcendência, sem poesia sequer. Eu, ou qualquer outro no meu lugar, não faz a menor diferença.
Parto dali como um proscrito. Fujo em busca de alguém que me conheça. Alguém que me assegure a existência com um átimo da sua atenção; porque só o afeto que recebemos nos garante que não somos apenas um acidente irrelevante; um rosto desconhecido numa foto antiga.


28 maio 2008

O Sino da Minha Aldeia

Diziam que um dia o roubaram. Diziam que um dia o resgataram. Os velhotes contavam coisas sobre ele como se se tratasse de um velho amigo. E contavam sempre como se fosse a primeira vez. Não para ensinarem nada, mas porque mastigar as palavras dava gozo.
Ouviam-se uns aos outros à porta de uma taberna, só para terem a certeza que o tempo não tinha parado.

Mas apesar do consolo que as badaladas lhes davam, assegurando-lhes que as suas vidas continuavam prosseguindo, precisavam do som familiar e cúmplice do velho sino de bronze da torre da capela de Aguim para terem a garantia que estava tudo na mesma.
Os velhos só não precisavam do sino da capela para saber as horas; nos dias frios de Inverno sentavam-se ao sol, nos dias quentes de Verão sentavam-se à sombra, e iam mudando de lugar pela tarde fora a perseguir o conforto que a Natureza lhes oferecia, assim de borla, à velocidade que o sol marca as horas no chão com a sombra das coisas, e isso bastava-lhes.
Falavam de assuntos para nós totalmente misteriosos, de outros tempos, de outras vidas, coisas que tinham a idade do velho sino de bronze.
Contavam coisas de uma guerra que tinha havido na Europa e onde um deles tinha combatido. Os olhos do veterano parecia que deixavam de ver as coisas em seu redor enquanto falava, e os outros faziam um raro silêncio de solenidade.
De vez em quando o taberneiro trazia-lhes uma rodada e eles davam gargalhadas de prazer, enquanto nós passávamos por eles como se a nossa história e a história deles se tocassem apenas, como dois livros abertos ao acaso que roçassem levemente um no outro.
Eles ficavam tentando segurar o Tempo e nós levávamos o Tempo connosco. Descíamos o Barreiro para irmos nadar no rio da Ribeira. Que voltas deram estas palavras através dos tempos para que se diga hoje que um rio pertence a uma ribeira? Tomávamos banho nus e tínhamos que esconder bem a roupa para que as lavadeiras, mais abaixo, não no-las viessem roubar, decerto só para nos verem em pelo.
Como aquele expediente já não resultava, vinham às vezes protestar pelo nosso indecoro, e nós então, nadávamos de costas para que o nosso indecoro fosse realmente visível. E o sino de Aguim ia dando as horas para quem as quisesse ouvir. Se prestássemos atenção ouvi-las-íamos mesmo a esta distância.
Da Ribeira até ao Peneireiro havia muito percurso possível, mas nós não escolhíamos o menos longo. Nenhum de nós era um estudante aplicado, mas todos sabíamos que nem sempre a reta é o caminho mais curto entre dois pontos; ou isso, ou as árvores de fruto e as melhores videiras, faziam com que às vezes demorássemos a tarde toda para chegar ao Peneireiro.
O Peneireiro era o único sítio do mundo onde se podia comer uma sandes pelo preço do pão. Pedíamos um copo e uma sandes de cinco tostões, e o taberneiro pincelava um pão da Mealhada com molho de leitão e enchia o copo do próprio pipo.
E o sino ia dando as horas sem nós nunca darmos por isso. O sino pertencia à própria vida, como o sol e a sombra, como a água do rio da Ribeira, como as lavadeiras matreiramente escandalizadas com a nossa nudez, como as gargalhadas temperadas com um tinto, dos velhos à porta da taberna; e nós tínhamos a idade de quem nunca quer saber as horas.
Ele batia, bronze no bronze, pacientemente, sem pressas, mais convidando à preguiça que ao labor. Nós não ouvíamos e os velhos fingiam não ouvir, uma após outra, as badaladas chocalheiras do velho sino de Aguim; todas as badaladas necessárias para as pessoas saberem a quantas andavam. O som viajava por sobre as casas e os campos, como um lençol sonoro; e se fossem as trindades, os camponeses paravam como se fossem dizer as Avé Marias, aproveitando para se libertar um pouco do jugo do trabalho da terra. Os homens paravam as conversas, as mulheres os cantos, com que iludiam o castigo da lavoura. E uma paz imensa caía sobre eles à medida que as badaladas do velho sino de Aguim viajavam nas ondulações do ar por sobre as suas cabeças, como uma bênção divina.
Mas os velhos só ficavam em silêncio quando o ex-combatente falava das agruras da guerra. 
Durante toda a minha infância a guerra era aquele brilho líquido nos olhos do veterano a recordar as torturas às mãos dos alemães.
Como é estranho que não fosse de ódio! Parecia antes um grande desgosto. Mas que pode sentir um filho sacrificado pela pátria e que esta abandona nas prisões do inimigo? Ele a repetir as imprecações dos alemães em várias línguas na mesma frase. – Allez raus come on! E depois os olhos líquidos e a voz ecoando: camóne camóne…
E durante anos e anos, de geração em geração, até aos dias de hoje, a memória dessa imprecação perdura como uma condecoração póstuma na alcunha dos seus descendentes.
E depois vinha mais uma rodada e a conversa ganhava gargalhadas de novo.
As mesmas conversas de sempre. Como se fosse a primeira vez que as contavam, a fingirem que nem se davam conta.
Tal qual como faziam ao ouvir o sino. E ele, chegando a altura, dava as horas; duas vezes, para os distraídos.
E a hora chegou, foram embora. O tempo passou num instante.

09 março 2008

A Incerteza do Sol Nascente

Ao abrir a porta iria jurar que te ouvi dizer “Já viestes?” como era costume, e quase respondi “não mãe, ainda lá estou”, como sempre respondia com o meu sarcasmo que tanto te desconcertava, mas que nunca conseguia irritar-te; mas depois veio-me à memória a tua mão estendida ao lado do teu corpo, na cama do hospital, e a casa tornou-se vazia de um momento para o outro.
A porta da rua fechou-se sozinha como é hábito nos filmes de suspense e eu olhei para trás e depois deixei-me ficar a juntar as letras, vistas de trás para a frente, à transparência na vidraça, alinhando-as mentalmente: “Aluga-se.”
Os sons dos meus passos prolongam-se nas paredes, desconfortáveis sem o aconchego dos móveis. A cada porta que abro para uma dependência vazia, o desalento de um livro sem palavras.
Agora a tua mão apareceu na minha memória, vazia e inerte no colchão do hospital e eu percebi porque não me perguntaste se eu já tinha vindo. A mesma mão que segurou a mão do meu pai, um ano antes. A mão dele a levantar-se do colchão com gestos sincopados de inseto, tateando o ar em busca de um último afeto, e a tua a pegar-lhe num derradeiro ato de amor. Um segundo depois o braço dele transformou-se num tentáculo flácido de molusco e a mão escorregou da tua para o colchão e do colchão para o soalho e, num movimento pendular parou ao tocar o chão, a mostrar que o tempo tinha acabado.
Ninguém quer saber o que umas paredes nuas e frias guardam em si, dos seus moradores, como uma peça de roupa que soubéssemos ter sido usada por um ente querido. Mas será que uma vez tocada, cada parede destas não guardará para sempre um átomo que seja da mão que a tocou? Não guardará o eco das palavras ditas? Das alegrias e das mágoas? Das imprecações e das preces? Será que só na memória dos homens perdura por algum tempo o que uma vez aconteceu, e que tudo o mais é volátil; como a promessa que fizeste aqui, quando me viste partir para a defesa serôdia do império moribundo? Será que estas paredes guardam ainda o teu apelo, já que a Virgem de Fátima se esqueceu dele?
Havia dias, como hoje, em que o pôr-do-sol pintava tudo em cores quentes e do terraço eu olhava-o seguro de que Deus o haveria de fazer nascer no dia seguinte, e depois ia dormir sem remorsos nem temores. Mas hoje sei menos do que quando era criança; olho o sol e não acredito que Deus tenha as coisas sob controlo. Pode muito bem acontecer que se esqueça de o fazer nascer amanhã. Hoje não irei dormir sem remorsos.
Ao menos se a voz quase humana de um violoncelo acordasse o calor das vozes esquecidas; ou o som da chuva na vidraça, tão próximo da música, restituísse a alma a esta casa deserta; ou faltando tudo o mais, se ao menos um eco, que tivesse ficado reverberando por entre estas paredes dissesse o meu nome e perguntasse “Já viestes?” só para eu ter a certeza que regressei a casa…
Espreito pelo vidro sujo da janela para o pátio onde falta a velha figueira. Como morreu a velha figueira? Sinto uma dor imensa por não me lembrar; como se tivesse perdido a oportunidade de lhe dizer algo de muito importante e íntimo; como se tivesse remorsos de não ter vertido uma única lágrima pela sua morte. Até parece que uma música parou repentinamente dentro de mim. Talvez por isso a laranjeira se recuse a dar laranjas, ressentida pela minha ingratidão. Não sabe que as comíamos apenas por amizade, dado que eram um pouco azedas “São muito boas para acompanhar o leitão” desculpava-a o meu avô, que a conhecia desde pequenina… e nós sorriamos de ternura.
Também devo ter sido infeliz aqui, mas não me lembro.
Só me lembro de estarmos à mesa a falar todos ao mesmo tempo e de vir o cheiro bom da urze a arder na lareira. Porque será que punham urze no lume? Jamais o saberei agora. Talvez fosse para tornar mais aromática a minha saudade futura.
Sinto que um poema, ou qualquer coisa parecida, nasceu algures no fundo de mim, ao pensar nisto, mas ainda não lhe conheço as palavras; só quando a música regressar ao meu corpo ele virá à superfície, palavra por palavra. Espero saber colhê-las como flores, ou como frutos, ou como simples pedras a enfeitar a beira da estrada.

Como tudo deveria parecer mais harmonioso quando o Sol era o deus festivo e generoso que dava a luz e a vida. Como tudo deveria ser mais simples quando só se acreditava no que se entendia. Mas desde essa infância dos tempos, a humanidade evoluiu, transcendeu-se e finalmente ficou órfã ou a sós com um criador em que acredita humildemente, mas não entende.
O sino da capela de Aguim chama os fiéis acabrunhados e penitentes para a adoração do seu deus silencioso e invisível e eu olho o Sol belo e apocalíptico por entre o fumo dos incêndios de verão e comovo-me, incrédulo e órfão, até às lágrimas.

31 outubro 2007

Tempo: Adagio Sostenuto

Depois de descer as escadas de cimento, paro um pouco antes de saltar por cima do portão de ferro que dá para a rua. A minha rua não tem nome. Talvez um dia lhe venham a dar um nome, mas agora apenas posso dizer que é a minha rua e isso torna-a pessoal, íntima, como se de facto tivéssemos uma relação de posse mútua.
Já me encontro na rua agora. A minha rua. Passo como um fantasma, mal tocando o chão com os pés, para não denunciar a minha presença sob a janela do quarto dos meus pais que ainda estão no primeiro sono.
Felizmente umas notas soltas de trompete ajudam a abafar o som dos meus passos. Gosto de ouvir assim um músico à procura do caminho. Quase um exercício apenas. Notas rápidas para educar os dedos.
Ainda não se entende o discurso, é como se o Sr. António Carreto estivesse apenas a dizer palavras à toa que mais tarde haverá de dizer por uma ordem coerente. Agora o músico e o instrumento estão apenas a namorar, até se entenderem bem um com o outro. Um dia destes serão um só e desse casamento nascerá algo completo, um novo ser, que então terá vida própria e fará esquecer todo este trabalho de reconhecimento, de experimentação, de refinamento; mas algo me diz que o Sr. António Carreto gosta é mesmo desta parte. Acho que ele ensaia uma música como quem faz amor e é por isso que as notas saem para o ar frio da noite como investidas de um macho com cio, cercando a fêmea, repetindo os mesmos gestos, os mesmos sons, tal como num ritual de acasalamento.
Penso um bocado nisto e puxo de um cigarro. Sento-me no muro da casa da Ti Maria Adôa. Ainda é cedo e fico aqui um pouco a fazer tempo.
O Tirone do Ti Zé Sécio vem a coxear um pouco e fareja os meus pés, as minhas pernas, e depois de dar duas voltas à minha frente deita-se com o focinho sobre o meu pé direito. Os cães gostam de mim. Perdão, o Tirone gosta de mim, somos amigos. Generalizar neste caso é até falta de consideração.
Alguém fala alto. Um homem e uma mulher, mas tão longe que não consigo perceber o que dizem. As pessoas falam alto nas aldeias. Porque será? Talvez o que aconteça é que se ouça melhor nas aldeias, não há ruído de fundo: automóveis, elétricos, autocarros e tudo isso. O Tirone parece que ouviu algo importante porque se levantou alvoroçado e esticou a cabeça, depois ficou um momento como que indeciso, mas parece ter cedido à preguiça e voltou à sua posição anterior com a cabeça sobre o meu pé direito.
O Afonso e o Zé estão atrasados e eu ponho-me a andar sem eles.
Aqui, onde escrevo, depois de olhar ao longe o casario do Tovim, vejo no relógio do Windows que já é tarde também.
Devia ir dormir, mas apeteceu-me de repente apanhar um pouco de ar fresco. Fui um pouco à varanda e deixei-me ficar a reparar no ruído de fundo que realmente existe, um "hammm…" não é bem um ruído, é apenas uma diferença no ar, ou na alma, sei lá. Se eu gritasse daqui o casal que desce a rua lá em baixo não me ouviria e lembro-me bem que em Aguim as pessoas conversavam de uma casa para a outra, a distâncias inconcebíveis.
Quem sabe, talvez seja apenas porque esta rua tem um nome; não é a minha rua.
O Tirone segue atrás de mim enquanto me dirijo para o Largo do Sobreirinho. O Largo do Sobreirinho não é uma praça, nem uma rotunda e muito menos um cruzamento. O Largo do Sobreirinho não é um local de passagem; é um local de confluência, como um lago onde as ruas vêm desaguar. O melhor que o Largo do Sobreirinho tem, é não ter nada. Na verdade tem uma bomba lá ao fundo para onde me dirijo, mas para além disso não tem mais nada. É como uma caixa vazia ou uma folha de papel em branco; podemos fazer dele o que quisermos. De certo modo é como o facto de a minha rua não ter nome.
Cada um o concebe como coisa sua. Nós, que habitamos aqui, temos orgulho no Largo do Sobreirinho; é como um resquício de territorialidade tribal. Quando os do Robelho ou da Capela vêm para aqui jogar à bola nós sentimo-nos invadidos.
Sento-me na borda do grande cilindro de cimento do poço da fonte e fico à espera já desconfiado com a demora. Decerto aqueles gajos não virão.
Em casa do Faria ainda se ouvem vozes e a luz que passa pela janela da cozinha pisca quando alguém lhe passa à frente. Penso que tenho dois tipos de amigos: Os do dia e os da noite, o Faria é dos do dia, e a sua amizade vai ao ponto de ter um objetivo a meu respeito, um projeto: ganhar-me para as coisas do desporto. Acho que já desistiu de mim para o futebol e agora investe no atletismo. Já medimos rigorosamente cem metros, que afinal é a distância entre três postes de eletricidade, e uma vez por semana põe-me a correr como um desalmado; mas não consigo descer dos onze segundos e um quarto. Não sei como é que ele mede um quarto de segundo no relógio de pulso. Já decidimos que temos que improvisar uns apoios para o arranque, porque faço os últimos cinquenta metros em cinco segundos e o problema está portanto no arranque. Acho que ele me engana para me entusiasmar e eu finjo que não dou por nada para ele continuar a insistir. Se calhar é isto que é a amizade.
Batem uma porta e a luz apaga-se na casa do Faria. As vozes aumentam um pouco e depois vão-se esfumando lentamente e quando o silêncio prevalece o meu amigo do dia esfuma-se também do meu pensamento.
O Tirone levanta-se e põe-se a cardar o pelo do pescoço com uma pata traseira, depois acalma-se e levanta-se de novo e volta a catar-se, ganindo de nervosismo ou de dor. Senta-se finalmente ainda um pouco agitado.
Da rua do Robelho vem alguém a correr, surge debaixo da luz do poste por instantes e desaparece pela ladeira do Arvoredo.
Agora, a noite. Apenas a noite. Eu, o meu amigo Tirone e a Noite.
Acho que não vêm já, começa a ficar tarde, daqui a pouco desisto.
À noite, Aguim transmuta-se, não se transfigura apenas como qualquer outra terra, não; transmuta-se, isto é, passa para outra esfera, outra dimensão, passa a ser outra coisa. Algo fechado sobre si, onde identificar alguém pode ser considerado um abuso, uma devassa. As luzes pitosgas no cimo dos postes, cuja rede elétrica é ainda do tempo da Cooperativa, não alumiam nada e são vistas como uma ameaça. É comum as pessoas passarem do outro lado da estrada, onde será mais difícil reconhecê-las.
Acendo mais um cigarro enquanto espero por aqueles gajos e ouço o Tirone a ressonar. Eu, a noite de Aguim e um cão que ressona.
Olho a última frase no monitor do computador, com o cursor a piscar e dá-me a ideia que não foi escrita por mim. "Eu, a noite de Aguim e um cão que ressona." Li-a em voz alta e soou-me como um título de qualquer coisa, um estribilho, algo que tivesse ouvido algures; algo que parece mais do domínio público do que meu.
Ao escrevermos um pensamento, ele deixa de ser um pensamento. Mas voltará a sê-lo quando for lido. Porém, será um pensamento pensado por fora, como é vista a imagem que os outros têm de nós. Agora, à distância de tantos anos, quem está sentado no poço da fonte do Sobreirinho não sou eu, é alguém que vejo de um futuro que já chegou e que me dá uma perspetiva de espectador; ou por outras palavras, ao ler aquela frase, como um leitor a leria, quebrei o sortilégio da escrita, o encanto da fantasia, e fiquei confrontado com a realidade, que é sempre menos cativante. Ou isso, ou preciso de ir dormir.
Bem, já não vou esperar mais. Eles não virão. Não sei o que aconteceu, mas o pior é que agora não estou com disposição para passar o resto da noite no café e também não tenho sono.
Acende-se uma luz na casa do Sr. Alves e ao longe ouve-se um ruído de motor que se vai aproximando, parece ser uma motorizada. Vem do Peneireiro e passa por mim. Leva dois tipos. A luz da motorizada ilumina-me por um segundo e um deles grita: "Eh Manel!" e seguem para o Robelho. Param assim que saem do largo e não faço a mínima ideia de quem são. Ouço-os falar um com o outro. O Tirone acordou e apontou o nariz para o sítio de onde vêm as vozes, quieto como se fosse um animal empalhado.
Há dias em que nada acontece em Aguim. Em que o tempo parece a água congelada de um rio. Podia levantar-me do poço da bomba do Sobreirinho, onde estou, mas este desalento que sinto por não ter nada que fazer este serão, imobiliza-me. Devo parecer um animal empalhado também.
Começo a andar sem que isso seja verdadeiramente um propósito meu e o Tirone assustou-se. Caminho em direção à Capela com o Tirone a meu lado. Às vezes dá uma corridita para alçar a perna e urinar, e volta para o meu lado. Urina em todos os objetos que sobressaem da monotonia da estrada. Reparo novamente que está manco.
Dou conta que também caminho do lado oposto das luzes da rua. Acendo outro cigarro. Hoje a minha mãe disse-me que desconfia que eu fumo, e avisou-me que o tabaco me fará muito mal à saúde. Respondi-lhe que se fosse para me fazer bem à saúde eu tomaria óleo de fígado de bacalhau. Ela não percebeu a piada e eu fiquei na minha, já estou habituado a que o meu conceito de humor pareça idiota para a maioria das pessoas.
O sino da capela bate uma vez. O som fica um bocado a vibrar no ar como as ondas de um lago onde cai uma pedra, e depois o silêncio volta e fica só a memória daquela badalada solitária. Há poucas coisas que melhor simbolizem o tempo do que uma badalada de um sino velho. Uma hora. Outro dia começou. Quem repararia nisso se não fosse o sino? Não sei o que é o tempo, mas para mim agora o tempo é apenas uma coisa que não anda nem desanda. É um som metálico, vibrante, algo lúgubre, mas também familiar, acolhedor, que cria ondas no ar como uma pedra num lago.
A gente olha para o ponteiro grande do relógio da capela e vê-se bem que o tempo não anda, de repente dá um saltinho quando nos distraímos. O tempo é mesmo a coisa mais traiçoeira que existe, só quando não temos nada que fazer é que o tempo não anda. Distraímo-nos e pronto, já passou.
Bate novamente. Sorrio ao pensar que o sino de Aguim agiu como se se tivesse enganado e viesse dizer: "Agora é que é uma hora, há bocado enganei-me, desculpem." O espaço de tempo entre as duas badaladas não conta, foi um lapso, O sino da capela de Aguim baniu-o das nossas vidas. Não aconteceu. Para as pessoas que já dormem não faz diferença mas para mim e para o Tirone foi um ror de tempo. Para mim uma chatice sem fazer nada, para o Tirone, pelo menos duas mijinhas numa pedra e num poste de eletricidade.
Aqui, na avenida Elísio de Moura um carro faz chiar os pneus numa travagem forçada. Aguardei pelo som do embate, mas em vez disso ouviram-se duas buzinas diferentes, como se os carros, e não os condutores, estivessem agora a discutir um com o outro devido àquela travagem.
Às vezes apetece-me também travar a fundo para ver se ponho o Tempo a andar à velocidade que ele tinha em Aguim quando os velhos se sentavam à porta das tabernas a adorar o sol de fim de Verão e as velhas se sentavam no rebate da Capelinha de S. José a catarem as lêndeas com um pente de dentes muito fininhos para cima de um pano branco, sobre o regaço. É essa a velocidade certa para fazer as coisas de que se gosta de verdade, mas é tão difícil agora. O Tempo é tão veloz, há sempre tanta coisa para fazer ao mesmo tempo.
Parei um pouco aqui hoje em vez de ir dormir. Durante alguns minutos o Tempo desacelerou. Durante alguns minutos não tive nada que fazer; e é isso que é preciso para ler e para escrever, que são formas de conversar. É preciso não ter pressa para se poder conversar. É preciso não ter nada para fazer para cultivar a amizade.
Mais uma vez a história ficou para trás. Não faz mal, conversar é mais importante. Logo a retomarei sem pressa, como quem conversa à porta de uma taberna ou cata lêndeas ao sol.
Olho para trás e o Tirone está sentado no meio da rua ganindo baixinho e vendo-me afastar, com a cabeça um pouco de lado. Chamo-o batendo com a mão na perna e ele em vez de se aproximar poisa a cabeça no chão entre as patas. Chamo-o de novo e ele parece determinado a não sair dali. Entro no Largo da Capela e olho ainda mais uma vez para trás e ele continua com a cabeça entre as patas tristíssimo.
Reparo que na rua do Outeiro estão dois tipos a falar. Um parece zangado, o outro conciliador. O zangado esbraceja e avança, o conciliador abre os braços de vez em quando e vai recuando. Não parece uma rixa entre ambos porque falam em voz baixa. À medida que um recua e o outro vai avançando, desaparecem por detrás da casa dos Cerveiras. E eu desço a rua do café.
Ainda penso no Tirone mais uma vez. Porque será que não quis entrar no Largo da Capela? Será que os cães também rivalizam entre si, por uns serem do Sobreirinho e os outros da Capela?
Pela janela do café vejo o Toni a jogar às damas com o Ti 'Lexandre. O Toni está recostado na cadeira fingindo nem olhar para o tabuleiro e o Ti 'Lexandre levanta uma mão, com o polegar e o indicador a fazerem uma argolinha e esticando os outros dedos como se fosse empurrar uma pedra. Hesita. Recua. E na falta de melhor, aproveita para ajeitar o chapéu que tem pousado numa cadeira a seu lado. Depois fica pensativo, ligeiramente curvado para o tabuleiro. Ao lado, numa mesa de King, todos saltaram repentinamente numa gargalhada, olhando as cartas sobre a mesa, como se elas tivessem feito algo inesperadamente hilariante.
Tanto quanto sei, houve duas coisas que alteraram as noites de Aguim: A luz elétrica e o café. De facto nunca mais voltaram a ser a mesma coisa depois que o café abriu. Lembro-me perfeitamente dos primeiros dias em que as pessoas tomavam o ar solene de quem entra numa igreja. De como se sentavam com aprumo junto às mesinhas. Um velho de que já não membro o nome bebia a bica delicadamente com a colherinha. A maioria tomava o que sempre tomou nas tavernas: vinho tinto; mas não diziam "Quero um penalty" ou "Quero mais um petardo"; diziam com um maneirismo cómico: "Um copinho de vinho tinto se faz 'abor."
Sorrio ao olhar o nome pintado na parede "Café Nouo Dia". O Sr. Pinto a querer dar um toque vernáculo à inscrição e as pessoas a rirem-se do pintor: "Ó inganô-se, ó no sabe escrever…"
Durante algum tempo o Café Novo Dia trouxe a Aguim o ambiente que já não era comum em lado nenhum; de certo modo recuou no tempo para criar um espaço de sobriedade e bom gosto, e fez Aguim avançar no tempo até que um dia ficou a par com as invencíveis leis da concorrência e da vulgaridade, e mais uma vez as noites de Aguim mudaram para nunca mais voltarem a ser as mesmas.
O Tirone aguarda-me ao fundo da rua do café, deu a volta ao casario para vir ao meu encontro e está visivelmente feliz por me ver. E aqueles gajos que não apareceram. Se calhar o pai já descobriu que fomos nós que escaqueirámos a motorizada num acidente, a semana passada, e estão de castigo.
E regresso finalmente a casa com o Tirone que agora vai cheirando todos os sítios onde urinou à vinda para cá. E quando lhe parece que o cheiro não é suficientemente intenso renova a dose.
Uma janela pequena na noite. Quatro quadrados de luz amarela unidos por uma cruz. Por detrás da janela deve estar gente. Será um quarto? Alguém que faz serão? Alguém doente que acorda a meio da noite em busca de auxílio? Sinto que se desenrola uma história por detrás daquela cruz negra que segura os quatro quadrados de luz amarela no meio do casario e no meio da noite. Apetece-me chegar-me ao pé dela para conhecer essa história. A eterna curiosidade pela vida alheia que neste momento me atrai tanto como à maior coscuvilheira de Aguim. Por detrás daquela janela acontece qualquer coisa, existe uma vida, paixões, conflitos; um segredo que me exclui. E eu vou-me afastando cobardemente; eu e o Tirone, para longe daquela hipótese de acontecimento, para o meio de coisa nenhuma.
Será que um dia vou recordar esta noite em Aguim, em que não aconteceu nada? Eu, o meu amigo Tirone e o Tempo. O Tempo a passar tão lentamente; à velocidade em que se deveriam apreciar as coisas boas da vida. À velocidade das histórias da minha avó, que ia falando e mexendo com a tenaz para espevitar o lume, com um riso nos olhos que nunca desaparecia, mesmo quando o rosto ficava triste. Puseram-lhe o nome de Senhora do Ó quando era nova, por ser bonita. Depois o tempo dela passou, até chegar o meu tempo, mas os olhos quase sem verem nada, continuaram sorrindo, e as palavras vinham devagar, cansadas. Dá-me a ideia que não diziam nada, eram só palavras. Ditas sem pressa, só porque lhe dava prazer falar comigo. Como uma música que trauteasse para me adormecer sem ter em conta os versos. Dizia muitas vezes: "Parece que foi onte" e continuava a história que nunca tinha fim. As tenazes a espevitarem o lume, o rosto triste e os olhos sorrindo; os olhos sorrindo sempre. E não acontecia nada. Só o lume se alterava um pouco de vez em quando.
Parece que foi onte.

06 agosto 2007

Prefácio Para um Livro Qualquer





























O cavalo resfolegava cansado, o meu avô imitava uma rela com a língua a vibrar no palato e às vezes o chicote estalava no ar. Depois chegávamos àquela curva na estrada e eu levantava-me no cimo da carrada de mato para ver melhor.
Mal dávamos a curva aparecia o portão de ferro. Um portão sem paredes nem muros à volta, firmemente agarrado às suas ombreiras de pedra, parecia ter o préstimo de uma catedral no meio de um deserto. Uma imensa seara vinha a desdobrar-se pela encosta abaixo como um tapete dourado a esvoaçar ao vento, sem nada que o prendesse, a não ser aqui e ali algumas pedras dispersas que deveriam ser o que restava de um antigo muro. E o portão de ferro, cioso do seu papel, a interromper o caminho que entrava pela seara dentro.
Nessa idade eu tinha poucas dúvidas e tudo fazia sentido para mim nesta vida. Por isso aquele portão, estoico no seu posto, fascinava-me como a transcendência fascina os crentes que nunca questionam a razão de ser dos mistérios da sua fé.
Uma vez por ano, quando o meu avô ia buscar a carrada de mato àquele pinhal perdido numa encosta da Serra do Buçaco, eu erguia-me antes da curva da estrada para ver se o portão ainda lá estava, interrompendo o caminho que dava acesso à seara. Será que as pessoas paravam junto ao portão, o abriam, como quem abre a porta de armas de um quartel e depois o transpunham e fechavam de novo, para impedir os intrusos de devassarem a propriedade alheia, apesar de toda a seara em redor estar completamente desimpedida?
– Vô, para que serve aquele portão?
- Atão, prá ´brir e fechar, no é?
Como são insuficientes as coisas que vemos apenas com os olhos…
Que mundos invisíveis, que universos paralelos, que prodígios se nos revelariam para lá daquele portão, tal como o delirante País das Maravilhas se revelou para lá do espelho da pequena Alice?
Nunca consegui convencer o meu avô a parar para eu experimentar passar pelo portão, só para ver o que acontecia. Mas o cavalo resfolegava sempre logo a seguir à curva da estrada, talvez sentindo algo oculto ao entendimento humano, e imediatamente a rela do meu avô acordava-o para as coisas deste mundo.
Entretanto cresci e fui perdendo todas as certezas que tinha. Deixei de ir com o meu avô buscar o mato. Depois o cavalo morreu. Depois houve uma guerra e eu fui combater. Depois houve uma revolução e a guerra acabou. Depois o meu avô morreu também.
Acho que o mundo todo se modificou e nem uma só certeza de criança me acompanhou pela vida fora.
Mas um dia – porque nas histórias que começam quando somos crianças e se prolongam pela vida fora, há sempre um dia em que algo acontece que merece ser contado – um dia, o acaso levou-me lá, ao volante do meu velho Fiat 128, e dei por mim a querer pôr-me de pé para ver melhor a berma da estrada, e depois de dar a curva parei. Estranhei não ter ouvido o resfolegar do cavalo e a rela do meu avô. Não sei quanto tempo estive a olhar para o portão, assim, firmemente agarrado às suas ombreiras de pedra, no seu posto, como um soldado heroicamente resistente quando já todo o batalhão tivesse tombado e muito tempo depois de a guerra ter terminado.
E o Zé: — Que foi?
E eu a caminhar sem a menor hesitação para o portão.
– Que foi? E saiu do carro para me seguir. Levantei a mão esquerda a pedir-lhe que parasse e apoiei a mão direita no portão, mas quando estava já com a mão a empurrá-lo… "Que foi" insistia o Zé… assaltou-me a dúvida. Será que deveria fazer aquilo? Olhei para trás, para o Zé, que parecia temer pela minha sanidade mental e que dava ares de estar a ponto de intervir de uma forma mais coerciva, talvez por temer que eu pudesse pôr em perigo a minha própria integridade física. Mas eu fiquei imóvel com a mão apoiada no portão sem coragem para o abrir.- Não posso quebrar o encanto, disse eu, – isto faz parte do meu imaginário, não vou cometer este sacrilégio.
E o Zé a tentar manter a calma: – Que… foi?
– Não. É melhor não.
Recuei e fiquei a olhar o portão de longe.
Levei metade da viagem a explicar ao Zé toda aquela história e a outra metade da viagem a tentar convencê-lo que não voltei para trás por cobardia.
Tornei-me, com o tempo, quase um céptico, mas sinto a nostalgia do fantástico, se não do sobrenatural. O mais perto que tenho estado daquela sensação, tão próxima da transcendência, é quando abro um livro. Sinto sempre que vou entrar num mundo diferente. Ao ler a primeira palavra, o texto transporta-me logo para outro espaço, como acontece quando clicamos numa linha de hipertexto num computador; para outra realidade; não para a fantasia, mas para outra realidade, como imaginava que aconteceria comigo se atravessasse aquele portão, sozinho a guardar a imensa seara sem vedação.
Só eu tinha a certeza que passaria desta dimensão; só eu sabia que era possível entrar noutra realidade, como agora faço com os livros que leio.
Já fui de avião até ao norte da Europa e de navio até ao sul de África, mas nunca fui tão longe como quando viajei dentro de um livro, sem sair do meu sofá da sala. O Homem já inventou prodígios de tecnologia, mas nunca algo que tenha suplantado a invenção do livro: sem mais energia do que a da ponta dos dedos, sem mais realidade virtual do que a da capacidade de sonhar, e no entanto, não há lugar no mundo ou fora dele aonde não possamos ir. E quando quisermos regressar basta fechar o livro como quem bate palmas, e toda a fantasia se desvanece para dar lugar à realidade. Ir e voltar de um lado ao outro de tudo quanto se possa conceber, apenas com algumas gotas de tinta sobre umas quantas folhas de papel. E não são precisas mais que duas pessoas para isso: a que escreve e a que lê.
Será que estas minhas palavras terão também para alguém esse sortilégio? Conseguirão fazer alguém transpor os limites prosaicos da realidade e atravessar o pórtico improvável da fantasia? É esse o meu propósito e o meu desafio aqui: criar uma realidade paralela, com recurso apenas a palavras escritas.
Imaginem os aros das rodas da carroça a triturarem as pedras do caminho, a curva a aproximar-se, o cavalo a resfolegar e o meu avô a estridular com a língua para o prender a este mundo… e o portão solitário e orgulhoso a desafiar a sanidade humana. Não sei o que vos ficou da infância, mas se é verdade que lá deixei todas as minhas certezas, pelo menos esta capacidade trouxe comigo; e não há nenhum pragmatismo que me impeça de sonhar e nem nenhuma tacanha tibieza humana que me limite o fascínio pelo inútil, utópico e sublime mundo da poesia e nem nenhum portão servirá jamais apenas para abrir e fechar, que aberto ou fechado será sempre inútil. Mas é aí que reside justamente o seu fascínio: se for difícil abri-lo sonharei sempre com isso, se for fácil, preferirei mil vezes fingir que é difícil.