04 fevereiro 2014

Desolação

Estou cansado. Não sei de onde me vem este cansaço.
 
O largo da Capela está vazio. Fazem-me falta os velhos sentados no banco corrido à frente da loja do Sr. Boanerges. Eles, cansados também, fitando a fachada da capela da Nossa Senhora do Ó como se estivessem a ver um filme enquanto falavam entre si.
Ia a caminho de Águeda e deu-me para subir o Barreiro e ficar aqui um bocado. E aqui estou eu como se estivesse a ver um filme projetado na fachada da capela. Parece mais nova a capela, mas o largo está vazio, e eu senti-me cansado de repente. Sinto-me como um marido arrependido, regressando a casa depois de um serão de orgias. Tudo parece olhar-me com uma falsa distração, não me dando atenção para me fazer sentir insignificante.
Pode trazer-se a fisionomia de um rosto, as estrofes de um poema, os compassos de uma música dentro de nós; eu trago a torre de uma capela.
Sinto-a nitidamente, erecta sobre a colina de Aguim, sobreposta a um céu de cetim quase limpo.
Uma pessoa vem ainda longe e a sua silhueta já nos faz sentir em casa, como se sentirão os mareantes ao verem ao longe o farol da Barra.
Desculpa ter chegado tarde, desculpa ter-me distraído com as horas. Saí para tomar um copo e quando dei por ela tinham passado trinta e tal anos.
Eu sei, eu sei. Foi a aventura que me levou, a viagem, a pior das vertigens: a guerra. Saí daqui para ir matar e morri por lá… nunca mais voltei de verdade porque entretanto já era outro.
Já nem sei se sou daqui, mas ao passar lá em baixo algo me chamou, como que a meter conversa sem ter assunto, e eu a fazer pisca para a direita… e agora deu-me para falar sozinho como um bêbado abandonado por lhe terem fechado a porta de casa.
Trago uma torre comigo. Sei a textura das pedras dos degraus em caracol. Sei o silêncio das pedras. A quietude das pedras. A temperatura das pedras. Testemunhas pacientes do Tempo. Eu a subi-las enquanto lá em baixo na nave da capela se rezava a missa. E eu a tentar ver o mar do patamar superior… Era bom, reconfortante, olhar o horizonte e saber que para lá do horizonte existia o mar, mesmo que não o visse dali; e ter essa certeza, como todas as outras certezas que eu tinha então, parece-me agora uma garantia de ter sido feliz.
Um dia fiz ali um pecado e não houve uma única daquelas pedras que me denunciasse; e Deus, não o que alguns homens criaram à sua imagem e semelhança, mas o impossível pai que todos gostaríamos de ter, a rir-se cúmplice, enquanto no Largo da Capela as bandas tocavam ao desafio.
Mas hoje o Largo da Capela está vazio, vazio como quando eu saía do meu quarto para ir brincar no Sobreirinho e os meus amigos já tinham ido todos embora. Para onde foram todos? Porque não me chamaram? O Faria, o Zé, o Rolo; que amigos são estes que me deixaram a brincar sozinho?
Hoje o Largo da Capela e o Sobreirinho parecem uma parede vazia onde sempre esteve um quadro, um escaparate sem um único livro, uma cómoda de gavetas abertas de onde levaram a roupa, uma estação de caminho de ferro deserta, depois de ter partido o último comboio. E eu com o desalento que só um filho único conhece, quando os seus amigos foram embora sem o terem chamado.
Eu amo uma torre que me pede de longe que pare. Que não siga viagem, que suba o Barreiro e entre na minha casa, mesmo que essa casa seja um templo de adoração a um deus que me é estranho.
Um farol que teima em dizer-me que eu sou daqui, que afinal os meus amigos estão todos à minha espera, que é apenas uma questão de tempo e logo nos sentaremos à mesma mesa com a desculpa de nos apetecer beber uns copos por causa do inocente pudor masculino de assumirmos os afetos.
Se fosse possível, quando for a minha vez de me juntar a eles, gostaria que me rezassem ali uma missa de corpo presente, mesmo que o meu corpo esteja noutro lado qualquer, que pedissem por mim a Deus mesmo sabendo toda a gente que eu fora ateu, ou, se não fosse pedir muito, que se reunissem ali cantando. Só para eu consumar este amor antigo. E por favor… que alguém se esgueire pelas escadas da torre e vá praticar o seu primeiro pecado enquanto na nave os meus amigos que ainda fiquem por cá se despeçam de mim.

14 janeiro 2010

As Cinco Estações do Ano em Aguim


1 - O Último Verão da Minha Inocência

Antes do alcatrão, o pó nas estradas e os pés das mulheres encortiçados ignorando as pedras. Eu olhando o meu mundo de criança rente ao chão; tudo visto de baixo para cima. A ouvir o restolho de uma cobra na erva, o sobressalto dos pássaros numa oliveira. A sentir a paciência das vinhas, quietas, a aguardarem que as uvas amadurecessem.
– Tudo a seu tempo.
A minha avó, especialista em paciência, compreendia as vinhas. Eu não: – Queria um cacho, vó.
– Tudo a seu tempo.
E eu desistia porque o Verão era longo.
Os adultos falavam de coisas estranhas. Falavam depressa de mais. E tinham sempre que fazer.
– Porque demorastes tanto, Zé?
E o meu pai: – Fui abicar as couves.
Só o meu avô se deixava às vezes ficar a fingir que dormia a sesta. A fingir: porque a mão enxotava as moscas como o rabo do cavalo. De vez em quando o cavalo resfolegava, amarrado à velha figueira, com o saco de ração pendurado nas orelhas para não ter de dobrar o pescoço para comer, e o meu avô com o máximo de ternura que lhe conheci: – O que é? – E ele acalmava-se. O meu avô falava frequentemente com o cavalo. Não admira, passavam muito tempo juntos.
As moscas inquietas, e zás, a mão a enxotá-las de um lado e o rabo do cavalo a enxotá-las do outro. O zumbido das moscas a fazer-me sono. E o restolho da erva. O sobressalto das oliveiras. A paciência das vinhas.
Às vezes, sem eu contar, havia festa e toda a gente deixava de trabalhar. Tudo cheirava de modo diferente. Eram os mesmos cheiros, mas mais alegres. As mulheres aperreavam os pés encortiçados em sapatos enormes, só por uma questão de elegância, o que lhes dava um andar torturado, e os homens usavam com orgulho uma tira de pano pendurada ao pescoço, elevada à categoria de gravata, e um raminho de limonete atrás da orelha para dar um toque de classe. Então é que eu notava que mal se lavavam, que apenas se desenxovalhavam. Passavam uma água pelo corpo, tiravam a maior, mas o encardido ficava. A marca do castigo, da labuta, da tortura habitual do trabalho. Tão habitual que havia um certo desassossego nos dias de festa, como se os corpos habituados ao esforço se sentissem descontrolados sem esse lastro pesado do trabalho.
As festas apanhavam-me sempre de surpresa. Num dia tudo tinha os mesmos vagares, e no outro tudo acordava eufórico, e, quando eu me habituava, lá voltava tudo inesperadamente à mesma rotina. Os cheiros acalmavam de novo, familiares de novo, como uma cama já afeita ao corpo.
O cheiro hormonal do cavalo, o cheiro nutritivo do estrume, o cheiro cáustico do lume, o cheiro acre da massa lêveda a fazer adivinhar o cheiro sem adjetivos supérfluos da boroa fresca.
Quando não fingia dormir o meu avô assobiava; só uma nota, incessante, distraída. Ele a olhar para um lado e as mãos a fazerem as coisas numa destreza mecânica para o outro. E o assobio sempre igual, só interrompido para tomar fôlego. Do outro lado da rua o Ti Zé Sécio batia, batia, assobiando também uma nota só. E o ferro gritava a cada marretada, e depois num arrepio cortante fazia ferver a água fria da pia ao lado da forja. Saía a chiar e sem fôlego daquela têmpera rude e o Ti Zé observava-o com minúcias de ourives e, às vezes insatisfeito, reiniciava a tortura.
O meu mundo por essa altura dividia-se em dois grupos de pessoas: os que passavam fome e os que tinham falta de apetite. Ora, se os que passavam fome nunca tinham falta de apetite, porque me torturavam em casa para eu comer? Eu olhava invejoso para a voracidade do Xico Pã. Ele mergulhava os dedos no barro e trazia para cima um pequeno tubérculo branco. – Experimenta, é uma zonzelha. – E eu surpreendido com o sabor picante a rabanete.
Zonzelhas no Barreiro e medronhos no Monte Grande, tâmaras no Sobreirinho e amoras em Vale de Cide. A fome era uma virtude.
Ele a devorar um tomate e a rir-se de me ver mordiscar o meu, cheio de escrúpulos.
Foge repentinamente sem eu perceber porquê. Eu pasmado a vê-lo ir embora, e só a perceber que o momento era de perigo ao ver a ira nos olhos do Sr. Luis Bandarra.
O tribunal na loja da minha mãe com o Sr. Luis a exibir o meu boné de palha como corpo de delito, e a apontar a minha camisa com a marca ensanguentada do crime. Eu a sentir-me o assassino de um tomate.
– O meu filho a comer tomates da horta? – A minha mãe confusa. – Mas ele é tão biqueiro… – Eu nem merecia castigo.
O meu pai ofendido na honra, de mão irrequieta, e as minhas orelhas a arder. O meu avô a defender-me só para contrariar toda a gente, e eu a jurar arrependimento de lágrimas manhosas.
– Vejam lá, uma amizade tão grande com o cachopo mais pobrezinho do lugar.
Ficou decidido: tudo se deveu às más companhias, e ficou toda a gente satisfeita. Só a mão do meu pai teimosa, com a minha mãe a segurá-la: – Ó Zé!
O meu amigo com alcunha de deus grego a roubar para matar a fome e a levar com as culpas pela minha cobardia. Eu sempre tão censurado pela minha falta de apetite a concluir finalmente que a fome não era uma virtude. Virtude era saltar o muro, e a ansiedade no meu estômago a confundir-se com a fome do meu amigo. Virtude era trepar a nespereira e comer as nêsperas mornas do sol. Virtude era estar alerta e fugir sem sequer ser visto – o Ti Mariano com a vara de picar os bois chegava sempre tarde.
Quem não guardar no cacifo da memória uma delinquência infantil não sabe verdadeiramente o que é ser feliz.
Mas às vezes as coisas paravam. As pessoas ganhavam um passo lento, inconsequente, as pernas sem saberem para onde se dirigirem, os olhos pasmados e as mãos inúteis, sem uma ocupação que lhes desse préstimo. Diziam-se frases consensuais, parcimoniosas, tão previsíveis que normalmente começavam por "Pois é…" A fatalidade punha as pessoas de acordo. Olhavam-se e encolhiam os ombros, porque todas as palavras possíveis eram escusadas e todas as outras eram inconvenientes. De vez em quando ouvia-se um "Coitado!" E depois o choro sem pudor. O desespero sem o constrangimento da etiqueta.
E por fim, tudo a sossegar de novo. Todos os sobressaltos a serem absorvidos pela rotina.
Eu olhava a parreira e as uvas ainda verdes. Que longo foi aquele Verão.
Um dia vieram uns homens e tiraram o telhado da cozinha. Assim, sem me avisarem. A gente a comer o escorrido e as estrelas por cima de nós. Às vezes passava um morcego a dar estalidos muito rápidos. A Lua e as estrelas a transformarem o meu jantar numa coisa sobrenatural.
A pequenez da cozinha do forno e toda a imensidão do universo. Será que vista das estrelas aquela mesa, com todas as pessoas que eu amava, ainda vivas à minha volta, pareceria igualmente sobrenatural?
Alguns dias depois, os homens vieram devolver o telhado, e eu levei uma semana a protestar por me terem tirado o céu.
Foi mais ou menos por essa altura que eu reparei na mudança do olhar. Os mesmos olhos, o mesmo olhar mas uma demora exagerada, uma atenção excessiva. As mãos também mais lentas, e o meu corpo a responder sem eu querer. Os gestos de sempre eram agora mais significativos, intencionais. Mas havia qualquer coisa de deslocado, de desconfortável, a querer tomar posse de algo em mim, algo ainda adormecido que reagia estremunhado a um prazer prematuro.
E tudo mudou repentinamente naquele verão. As uvas maduras na parreira do terraço a oferecerem-se em despudores de fêmea no cio, e eu, envergonhado com a minha confusão quanto às virtudes da fome e da gula, a tentar prender a minha atenção às tremuras do coiro do cavalo a reagir às moscas. A tentar perceber se o meu avô estava a dormir enquanto a mão imitava uma cauda a dar, a dar. Mas eu, na verdade, desatento, definitivamente desatento, ainda sem saber que nunca mais na minha vida conseguiria acertar o passo por aquele ritmo conformado, em que cada coisa ocupa apenas o seu lugar, e no tempo esperado. Em vez disso, um desassossego, uma urgência, uma inquietação; uma busca desnorteada de algo em falta mas inteiramente desconhecido. A descoberta da incompletude do corpo: o que dantes lhe era apenas adjacente e fraterno, era agora complementar e cúmplice – o pecado da fome.
Os arreganhos trocistas dos adultos a lerem os meus pensamentos. Tudo de repente tão divorciado, tão adverso, tão exterior a mim.
Por fim, como uma memória que se desvanece, a desidealização da Natureza: a erva sem mais bulício do que a passagem ocasional de um bicho, alguns pássaros nas oliveiras mudas, nada mais do que alguns pássaros.
E as vinhas? Perdera definitivamente naquele longo Verão, o sortilégio de me espantar com a paciência das vinhas.


2 - A Alquimia do Outono


Recordo esse tempo como quem olha para uma foto antiga que achou num baú velho.
Aquele ali sou eu, dizemos incrédulos por também termos sido crianças. Então temos a tendência irritante de dizer que fomos felizes nessa altura como nunca, desvalorizando tudo o que de bom aconteceu entretanto. Algumas pessoas, como se vê, chegam mesmo a escrever coisas sobre este assunto, como refúgio para as frustrações da idade madura.
Mas devo ter sido feliz, porque me lembro de estar deitado no chão a sentir o calor que parecia vir do próprio coração da Terra, e o cheiro da erva fresca acabada de pisar, e todo o azul que se pode imaginar, lá em cima; não como se tudo me pertencesse, mas como se eu pertencesse a tudo. E a voz da senhora do Porto a inventar histórias ali ao lado.
A senhora do Porto era uma velha, porque tinha mais de trinta anos, e era estrangeira porque tinha uma acentuada pronúncia do Norte; mas tinha o dom hipnótico de reunir à sua volta um bando de putos, que quando não jogavam à bola no Largo do Sobreirinho, todos contra todos para uma baliza só, entretinham-se a pôr em prática uma vertente extremista e ultra-radical do darwinismo, que consistia em matar cobras no Monte Grande, em pôr sapos a fumar com cigarros de barba de milho até estourarem, ou, quando tomavam banho na Lagoa do Olho, em fazer concursos de matar rãs à pedrada.
Devo ter sido mesmo feliz porque só me recordo de uma coisa que me ensombrou a infância, algo verdadeiramente incapacitante: não ser capaz de caminhar descalço.
– Olh'ó estapôr do cachopo que parece que vai todo engalicado. Pro qu'é que no calça o raça dos sapatos?
Aquele ali sou eu, a treinar a andar descalço pela estrada de Vale de Cide abaixo, duplamente envergonhado: por aquela figura ridícula de sapatos debaixo do braço, e por me dar a impressão que o chão eram só cacos de vidro, quando os meus amigos quase todos jogavam à bola descalços.
Mas depois chegava a senhora do Porto e passávamos para outra dimensão. As histórias começavam ainda na estrada, connosco a enxamear à sua volta calcando o finíssimo pó, mil vezes moído pelos aros das rodas dos carros de bois; e depois pelos campos fora, no convívio da miríade de insectos e vermes, de que a sociedade, amante dos produtos e valores liofilizados, ainda não nos ensinara a sentir nojo.
Entretanto, nos vinhedos do Solão, a alquimia do Outono transformava lentamente o verde das parras em cobre ou em ouro puro.
Depois da vindima em Aguim, colher uvas em vinha alheia deixava de ser roubo para ser rebusco, e os vindimadores deixavam de propósito algumas uvas de melhor qualidade para mais tarde as irem colher para si. Ora, toda a gente sabe que a necessidade que leva ao acto aguça normalmente o engenho, que por sua vez inspira a tolerância do julgador, mas nós antecipávamo-nos, sem respeito por esta regra da mais básica alquimia da justiça e pilhávamos os vinhedos em busca de um cacho ou ao menos de uma esgalha esquecida.
– Serafim, Serafim, s'eu achar é pra mim!
O Outono era o Verão cansado. Cada vez mais, a esturreira do sol dava lugar a um calor suportável, e ao fim da tarde o dia dava mostras de sonolência. E o calor que restava era um hálito morno que parecia vir mesmo das entranhas dos silvados e dos bosques. Até o canto nupcial das cega-regas se enchia de preguiça; ou então tinha sido bem-sucedido, e por essa hora já tinham passado das palavras à ação.
E os camponeses com passadas largas e lentas de enxada às costas. O corpo a descambar de cansaço. Passavam por nós, tão cansados que só diziam:
–Tarde!
Deixando que a entoação do cumprimento fizesse subentender a frase completa. E as mulheres atrás. Derreadas. Com grandes feixes de erva à cabeça e com um ar tão triste. Sempre vestidas de negro. Porque tinham sempre um ar triste as mulheres da minha terra? Às vezes riam como riem as crianças com fome: um pequeno intervalo na desgraça apenas, para depois continuarem a ser tristes. Nunca pensei nisto antes. Devo ter sido feliz, sim, porque nunca pensei nisto antes.
Quando deixou de vir a senhora do Porto ou quando deixei eu de a acompanhar? Não tenho a menor ideia. Talvez tenha sido na mesma altura em que aprendi a ter nojo dos bichos e das coisas da terra; ou tal como de um sonho, devo ter acordado apenas, para entrar noutras fantasias: para a puberdade, tão hormonal e prosaica como estúpida.
Um dia, na loja da senhora Idalina, vi-a a comprar uns chinelos de pano, que se destinavam a aproximar-se da empregada doméstica para poder espiá-la sem os seus passos serem ouvidos, e sofri um desgosto.
Com a senhora do Porto aprendi a dar valor às coisas até aí dadas como garantidas, por ter nascido no meio delas, mas que aos olhos de quem vê de fora são preciosidades; aprendi sobretudo a ver as coisas à minha volta para além da superfície e, na falta de uma história convincente para cada uma delas, simplesmente imaginar uma, porque a fantasia é que torna a vida sublime. E isso colocava a senhora do Porto numa esfera do meu imaginário onde não se fazem canalhices, e tudo quanto recebi dela era demasiado valioso para ser posto em causa por causa daquele pecado.
Nunca consegui resolver esse conflito: era impossível condená-la e era impossível absolvê-la. E a ela devo isso também: ganhei a capacidade de conceber o indivíduo na sua multiplicidade, de aceitar o anjo e a besta coabitando dentro de todos nós, isto é, de assumir humildemente a consciência da humana mediocridade.


3 - O Verão de São Martinho


Os cachos trincadeira e maria-gomes ao pendurão como úberes atraindo mosquitos e a minha gula. Daqui de cima, do sobrado que um dia será o primeiro andar da minha casa, pela porta que dá absurdamente para o telhado do alpendre, vejo lá em baixo um grupo de homens caminhando lentamente. Vêm do cemitério e vão em busca duma adega. Um ou dois malápios para fazer boca, e dois ou três copitos de vinho para molhar a goela. E logo se desfiam as maledicências, que na boca dos homens se disfarçam com um sarcasmo corrosivo e cruel, para não se confundirem com a alcoviteirice feminina, adocicada com meneios traiçoeiros; essa sim, obviamente manhosa e pérfida.
As primeiras chuvas como uma ameaça experimental, a ver se estamos distraídos, retiram, como se quisessem fazer negaças ao Inverno, e o sol esperançoso regressa. Os castanheiros da quinta do Sobreirinho de folhas afogueadas, de um castanho quase vermelho, e os plátanos a ganharem uma alegria nas copas cheias de sol, de um amarelo dourado, a sobressaírem ao verde, que em vários comprimentos de onda matizam o arvoredo em pano de fundo.
E no sobrado os santórios apurando sabores: os cachos ao pendurão, as peras em intumescimentos erógenos de puro açúcar e as bravo-de-esmolfe a perfumarem tudo, até metros e metros em redor.
Existe um encanto de doce decadência, nestes dias soalheiros que antecedem a força do Inverno, só comparável à beleza de uma mulher a lutar contra o murchar do viço: uma doçura serôdia de fruta madura, como os santórios no sobrado da minha casa.
E um último alento de energia efémera revigora o ar de calor e luz, num ressuscitar patético de moribundo.
Mas todos acreditamos nisso, porque nos apraz, porque nos convém; porque se não acreditamos nas ilusões, só nos resta a realidade, e a realidade é que o Inverno se seguirá à morte inelutável do Verão, ainda que ele se levante pelo São Martinho, com a derradeira coragem de um soldado ferido de morte para nos dar uma falsa esperança de vida.


4 - O Deslumbramento do Inverno

O cavaco de cerne fumarento preso na pinça da candeia de lata nunca deixava a Ti Maria Adôa às escuras.
As sombras assombrando as paredes.
A imagem de uma família humilde a comer as batatas da ceia sentada na minha memória para sempre. Um dia reconheci-a num quadro de Van Gogh.
Em minha casa a luz elétrica faltava sempre quando era mais precisa. Virá ainda hoje? Não virá? A incerteza à luz de uma vela é sempre mais vacilante, e as sombras do cavaco de cerne a mudarem-se para as paredes da minha cozinha.
Se não chovesse eu dava uma corrida até ao Rebelho para ver o Ti Zé Quiaios a manejar os fusíveis da cabine elétrica como um organista a puxar os registos de um órgão de igreja. O Ti Zé Quiaios era quase cego, com os olhos dilatados pelas lentes de cu de garrafa, mas as suas mãos tinham uma precisão de milímetros. Ou era ele que conhecia a cabine elétrica, ou então era a cabine que o conhecia a ele.
 – Ai no auguentas? Espera aí que já cospes!
A ferramenta e a mão, o nervo e a eletricidade, a cegueira e a luz. Tudo tão irmanado. Tão afeiçoados um ao outro: homem e máquina. E Aguim iluminava-se por fases e apagava-se por fases, e os fusíveis a estourarem, e o Ti Zé Quiaios a reforçar os bornes. Uma luta. Não uma luta: um jogo. Um jogo não: um namoro, uma sedução mútua entre a tecnologia e a humanidade; porque nesse tempo a tecnologia casava com a humanidade.
Quando Aguim finalmente ganhava a cintilação dos presépios, o Ti Zé Quiaios regressava a casa dele vitorioso, e eu à minha deslumbrado.
Os invernos eram eternos. E dava a ideia que começavam sempre antes do tempo. Eternos, porque quando ainda não conhecemos suficientemente o presente, ele parece não ter fim; a eternidade é apenas a ignorância dos limites. Habituámo-nos ao Verão e de repente o tempo a tomar balanço no Outono para a chuva nos apanhar desprevenidos.
– Podia esperar que apanhássemos os cachos da Casqueira.
O meu avô e o clima poucas vezes estavam de acordo, mas o meu avô já sabia de mais para se deixar surpreender; só os inocentes têm esse privilégio.
O Inverno, na verdade, começava muitas vezes a meio do Outono, como a morte começa muitas vezes a meio da vida. Quando começamos a morrer? Sei lá! Mas há sempre uma primeira chuvada que nos estraga a vindima, uma chuvada que nos apanha sempre desprevenidos. Acho que era por isso que o meu avô não gostava do Inverno.
Vista do alpendre do pátio, a vida na rua era um filme.
O Ti F'lipe batendo com um maço na madeira e transformando uma molhada de aduelas numa pipa de vinho. O novo aprendiz de pé sobre um dos tampos a segurar as aduelas pelo interior como uma margarida de pétalas abertas, enquanto por fora o Ti F'lipe as ia fechando. Quando a margarida se fechava, nascia uma tulipa de madeira que surpreendia o aprendiz, preso lá dentro aos berros.
O Ti Zé Sécio com uma enorme tenaz encaixava um aro em brasa numa roda de um carro de bois. Batia-lhe com o malho à vez com dois ajudantes. O fogo a dilatar o ferro, os malhos a domá-lo e a água a contraí-lo em torno da roda; tudo envolto em fumo, vapor e algazarra.
O Ti Antóino Mateus dedilhando os vimes como um tocador de harpa, e quem havia de dizer que aquela harpa de vimes ia acabar num poceiro para a vindima!
Tudo tão vivo, tudo tão animado. Uma coreografia que olhada assim de perto parecia não ter outro propósito que deslumbrar o meu olhar. Mas olhando de perto nunca se percebe bem o propósito da vida; só muitos anos mais tarde percebi tudo numa ópera de Verdi.
No enquadramento do portão, Aguim desfilava num traveling rápido, com uma banda sonora ao vivo. O Ti Zé Sécio ferreiro nos metais, o Ti F'lipe tanoeiro nas madeiras e o Ti Antóino Mateus cesteiro nas cordas. E a voz de falsete da moça serrana a fazer as camas de lavado sob o olhar oblíquo do meu avô. – Andas-me muito delambida… – Enquanto passava a carda com vagares de barbeiro no lombo do cavalo.
Aos primeiros pingos, a chuva fazia acelerar o filme do portão do pátio, com as pessoas a fugirem e a falarem mais alto, mas logo a abrandarem de novo conformadas. Um saco de estopa com um dos cantos encaixado para dentro do outro, e pronto, aí está um capote reforçado. A chuva molhava à mesma mas pelo menos dava-se-lhe luta.
E nisto o assombro dos trovões. A minha avó a dizer uma ladainha elevando a voz à medida que a trovoada aumentava, não fosse Santa Bárbara não ouvir bem por causa do barulho, e a confirmar se a cruz de alecrim benzida no Dia de Ramos estava atrás da porta para afastar todos os agouros.
E resultava, porque a trovoada afastava-se e ia fazer barulho para outro lado. E depois ficava a chuva apenas, e o som da chuva parecia silêncio.
– Ela é cá precisa.
– Podia esperar que apanhássemos os cachos da Casqueira.
– Este ano vai ter menos grau.
– Pró ano começamos mais cedo.
 As conversas à lareira da cozinha do forno só faziam sentido para os adultos. Falavam para si próprios como se estivessem sós, mas cientes de que se falassem todos a mesmo tempo, as várias solidões se uniriam para criar uma confraternidade. Mas eu acho que era o encantamento do lume na lareira que tornava aquelas sombras taciturnas nos rostos luminosos da minha família. O lume a fazer gemer as cavacas molhadas. Às vezes um estalido e os tições a aconchegarem-se uns aos outros. E a trovoada tão longe, agora que a ladainha da minha avó era só por mera precaução um simples tremelicar dos lábios.
Dias e dias, noites e noites, sem parar. A chuva era eterna também. Passada a surpresa, as coisas permaneciam para ficar, não davam um único indício de que teriam um fim. Havia lagos no Largo do Sobreirinho e rios que desaguavam na minha valeta. A água era uma constante à face da terra.
Mas uma noite, todo aquele dilúvio acalmava como um pranto de viúva esgotada de mágoa e resignada ao vazio do corpo.
Primeiro começava por nos surpreender o silêncio. O silêncio é o que ouvimos quando termina um ruído. Agora o silêncio era o xilofone das gotas grossas dos beirais a baterem nas latas à porta da oficina do Ti Zé Sécio. O vento norte foi-se embora desvairado pelo Caminho dos Poços abaixo e a noite sossegava finalmente. E logo mais, a madrugada acordava sem outro sobressalto que a brisa a trazer consigo os primeiros frios.
Um vidro a cobrir a água do tanque, a bomba de alavanca que não deitava uma gota, o cavalo a resfolegar na cavalariça, os gatos em novelos pelos cantos e a minha mãe a enchouriçar-me de roupa. Eu tinha que caminhar de braços e pernas abertas por causa das várias camadas de pano que me transformavam numa cebola ambulante.
– Cuidado com as correntes de ar.
Em minha casa nunca havia duas portas abertas ao mesmo tempo. Para mudar de divisão tínhamos os cuidados de um mergulhador na câmara de descompressão de um submarino.
Em breve o frio e a geada passavam a ser eternos também.
E lá faltava a luz de novo.
Logo aparecia uma vela acesa, mas quase tudo ficava na escuridão, porém, as coisas importantes sobressaíam a esta luz. Acho que é daí que vem a crença que é mais romântica. Se foi esta incapacidade de ver para além de certos limites que nos permitiu criar a conceção de infinito, foi ela também que nos permitiu criar a da intimidade. Se não, de onde me vem esta ideia de que jantávamos abraçados uns aos outros?
E a luz voltou. Apagávamos a vela e as baratas regressavam ao pátio. E quando nos preparávamos para continuar a ceia, voltava a falhar a luz e acendíamos a vela de novo.
E eu imaginava o Ti Zé Quiaios quase cego enrolando e desenrolando fios nos bornes dos fusíveis, pontificando do seu púlpito da mais avançada tecnologia a eterna luta entre a luz e as trevas, e a dizer sentencioso: – Ai no auguentas? Espera aí que já cospes!


5 - O Recobro da Primavera


A chuva a atormentar as folhas da laranjeira, e dentro de casa a ideia que o mundo é diferente: um conforto de mantas e escalfetas e a ausência do vento, só a chuva impotente de encontro às vidraças. O Inverno acaba por passar para os corpos. Os pés e as mãos a escaldarem em frente do lume e um frio cá dentro ainda. O rádio a crepitar estalidos com uma música de piano lá no fundo, tão no fundo, que parecem dois mundos também, o dos ruídos e o da música.
A minha mãe de termómetro na mão a ler o tamanho da minha gripe. O meu pai à porta, à espera de ler nos olhos dela o que ela lê no tubinho de vidro. E depois eu a ler nos olhos dele o que ele leu nos dela.
A minha mãe sacode a minha gripe do tubinho. Sacode, sacode e olha desanimada para o meu pai.
– 39!
– 39?!
– 39.
Esta casa é tão alegre quando não chove. Na sala, os retratos de antepassados defuntos não me tiram os olhos de cima, mas quando não chove nascem flores no cachepô da mesa.
Agora a chuva lá fora a criar bolor nas paredes cá dentro, a humidade a desenhar figuras nas paredes.
Olhando de certa maneira:
– Um cão, mãe.
De outra:
– Uma pomba.
– É a febre, meu filho.

Devia faltar pouco para o Carnaval, porque chegada a noite, lá fora, alguém usava um funil de almude como megafone para lançar pulhas ao namorado de uma vizinha, enquanto um coro ao lado uivava a cada provocação:
– É verdade! É verdade!
E na sala, os defuntos pendurados nas paredes sem tirarem os olhos de mim.
Muitos anos mais tarde, haveria de substituir os retratos todos por telas sujas de tinta com títulos inteligentes para serem tomados por obras de arte. E a minha mãe dividida entre a saudade dos olhos dos defuntos e o afeto pelas minhas manchas de tinta.
Mas nessa altura, ainda, os olhos da minha bisavó, pendurada na parede acima da cómoda, a olharem-me pela frincha da porta. E a aflição das folhas da laranjeira. E os dedos esqueléticos da figueira a lutarem com o vento. E o inverno no interior do corpo, embora tanto calor no rosto. E a minha avó a insultar a gripe:
– Aquela cadela que não o larga!
O sono era um delírio com as cores da vigília em negativo. Só que o quarto não tinha paredes e a mesma imagem teimosa a repetir-se vezes sem conta: um rio de tintas escuras e eu a afogar-me, a afogar-me. Depois desapareceu tudo e passou uma eternidade. Ou um instante, tanto faz; quando se perde a noção do tempo, tanto faz.
Acordei.
E quando acordei, a cabeça tão leve, uma dorzinha de fome tão boa, os sons da rua a enfeitarem o silêncio, uma voz que se aproxima lentamente, tão lentamente. Que passa e continua lentamente, tão lentamente.
As pessoas vão-se levantando e os ruídos da casa repentinos, estremunhados.
Alguma coisa mudou no mundo e não foi só a minha febre, a minha dor de cabeça, a preguiça que me dissolvia todos os músculos do corpo. Sinto uma lucidez que me vem de fora. Da luz que altera as cores do quarto, dos sons que parecem decididos.
Tudo parece ter um propósito qualquer.
Havia um ruído indeciso que desapareceu. Havia uma velatura amorfa que se dissolveu. Uma humidade pesada que enxugou, deixando a superfície das coisas nítida e sólida.
Mas a luz ainda húmida.
Um dedo da figueira toca na vidraça um código de morse a anunciar que algo alegre se aproxima.
Não havia mais música que o som da bigorna do Ti Zé e o perfilar das vozes que vinham todas do lugar e se dirigiam todas para o campo. Primeiro só algumas madrugadoras sem pressa, depois em maior número como um coro no compasso certo, e por fim as tardias, que passavam quase a correr. Não havia mais música do que isso, e se houvesse seria de mais, porque uma alegria amanhecia no corpo, uma euforia de festa que entrava com a luz da janela e que tornaria toda a música desnecessária.
A minha mãe à porta num júbilo de puérpera a ver-me despertar. A minha avó arrependida da imprecação da véspera:
– Aquela cadela! Que deus me perdoe.
O meu pai a aliviar da memória o agouro da pneumónica e a lutar com uma lágrima embaraçosa.
Em breve eu livre dos abafos e das portas fechadas. Em breve a corrida por entre as vozes dos meus pares como um coelho entre coelhos, como um pardal entre pardais.
Será que só retive o essencial ou era tudo verde? Recordo quando muito uns pingos de amarelo sobre o trevo, e umas erupções de púrpura na bungavília que enfeitava com as suas flores de papel o muro do Senhor Afonso Bandarra. Ali, eu sabia um ninho de pintassilgo. Sabia eu e o gato da Ti Maria Adôa.
Uma madrugada, os gravetos e a penugem no chão e uma pintassilga quieta num ramo. Uma comoção de pólen no nariz e lágrimas de alergia nos olhos; ou então, eu a entender o júbilo de puérpera da minha mãe.
Nada acontecia de especial em Aguim quando chegava a Primavera. Tirando o arraial do São José. Uma festa meio cristã meio pagã. As bandas a tocarem ao despique e uma parelha de cavadores a desenterrarem a Pedra-da-sesta.
Mas quando a Pedra-da-sesta ficava ali à espera da festa do Castro para ser enterrada de novo e os coretos, desfeitos no chão em despojos de palmas e açucenas, davam a ideia de que se travara ali um combate, regressava o sentimento de que todo o som era quase música, e que mais música seria de mais; a não ser, às vezes em dias muito especiais, quando o Sr. Manuel da Leonarda decidia acompanhar ao violino o concerto do Ti Zé na bigorna.
Nada acontecia de especial porque o Sol fazia a festa sozinho. Que tinha o Sol da minha infância que nunca mais o vi assim? Nascia mesmo por detrás do Monte Grande e já vinha em festa, e punha-se ainda alegre atrás da torre da capela.
À noite apetecia dormir e de manhã apetecia acordar. Tudo estava certo na Primavera.
Na verdade, tudo me parece ter estado certo nesse tempo. É costume, quando se olha o que já aconteceu, porque as coisas más já não podem fazer-nos mal; como quando olhamos pelo retrovisor desvalorizando as derrapagens perigosas que fizemos e amando já a estrada percorrida.
E nesta viagem em que parei algumas vezes para corporizar esse amor, as cidades foram as minhas verdadeiras amantes: Coimbra, a mulher tricana de todos os meus dias. Lisboa, a promíscua, tão fiel de dia e tão infiel de noite. Hamburgo, a altiva, com as suas cicatrizes de guerra a ensinar-me que há vida depois da morte. Mueda, a grande prostituta, onde desci ao mais baixo patamar da humanidade, que me levou quase tudo e que apesar disso me deixou, não sei em que parte de mim, um amor fatal e doloroso. E Aguim. Aguim trigueira, tisnada do sol, elevada sobre uma colina para parecer mais alta, onde tudo o que há em mim nasceu.
Nasceram as palavras na sua pronúncia um tanto abrupta no início das frases e cantada nas vogais finais, e, onde não havia vogais, a acrescentar um i.
Nasceu a música. O violino velho do meu pai de onde só saía o som dorido da única corda sobreviva, e o milagre da metamorfose do ruído em música, quando em dias especiais o violino do Sr. Manuel da Leonarda transformava a bigorna do Ti Zé Sécio no mais glorioso timbale que se pode conceber.
Nasceu esta minha fidelidade de rafeiro doméstico pelos meus amigos, que julgava tão poucos, e afinal muitos; tanto que, vão morrendo já e continuam meus amigos.
E nasceu esta minha paixão de gato vadio pelos becos e pelos telhados, pela tessitura prolixa das cidades e pelo deslumbramento da Natureza; tanto quanto me lembro, desde que via o Sol a erguer-se por detrás do Monte Grande já em festa e ainda convalescente do Inverno.

14 setembro 2009

A Carta


Não tenho nada para fazer hoje. Não tenho nenhum livro para ler, nenhuma música para ouvir. Apetecia-me escrever uma carta a alguém. Alguém que vivesse do outro lado do mar. Alguém que já se tivesse esquecido de mim há muito, e que ao receber a carta parasse num leve sorriso de surpresa. O envelope com a minha caligrafia e a carta lá dentro.
– De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Nada importante. Uma carta minha que tivesse levado quinze minutos a escrever e quinze dias a chegar. Queria interromper a vida de alguém com uma carta que não fosse importante, que essa pessoa guardasse no bolso para ler mais tarde, quando tivesse tempo, e se esquecesse disso, e deixasse no bolso do casaco durante muito tempo, e mais tarde, num dia em que não tivesse nada para fazer, nem um livro para ler, nem uma música para ouvir, se lembrasse repentinamente que ainda não a tinha lido, e a fosse procurar por todo o lado numa ansiedade de quem busca uma coisa que se tornou valiosa só porque não se sabe do seu paradeiro.
A letra a azul sobre o papel creme, letra de caneta de tinta permanente, de caligrafia esmerada, aqui e ali a esborratar um pouco, e a assinatura no fim. Uma assinatura tentada no ar em jeito de ensaio antes de a desenhar no papel, rápida e agilmente.
Nada de importante. Apenas uma carta de alguém que se conhece mal ou que já se esqueceu quase totalmente. Queria escrever uma carta assim. Uma carta sem uma notícia urgente, sem um pedido desesperado, sem uma declaração de amor, sem a intenção de cumprir sequer uma formalidade.
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Os olhos preguiçosos a verem o corpo do texto sobre o papel, sem lerem ainda. Do lado esquerdo impecavelmente alinhado e do lado direito sem respeitar a margem. Às vezes ultrapassando-a para escrever a palavra toda, apertando as letras, outras vezes, por julgar que não cabia, deixando um espaço excessivo.
Os olhos preguiçosos pousam na assinatura antes de lerem o texto. Um leve sorriso sarcástico.
– Quem será mesmo esse meu primo português que faz uma assinatura tão pretensiosa numa carta informal.
Queria escrever uma carta a alguém. Cumprindo um ritual. Ao fundo na Elísio de Moura o som dos carros no asfalto molhado resgatam-me, não sei de que memórias, a lembrança do mar. A cadência das ondas como um pulsar de desalento irremissível. Uma coisa tristíssima sem motivo nenhum. A minha avó a dar um ai que parecia a alma a rasgar. – Que tristeza é essa 'vó? – Não estou triste meu filho, é o hábito. Os carros a passarem na Elísio de Moura como se a tristeza da minha avó fosse um hábito tão grande que agora enche os momentos de tédio em que me apetece escrever uma carta por não ter nada que fazer.
A carta nas mãos de alguém do outro lado do mar. Uma varanda sobre a vegetação tropical e uma carta que ainda está para ser lida. Uma carta de quem sentiu a solidão da noite e um apelo irresistível para comunicar com alguém. Não uma pessoa íntima que sabe quase tudo de nós. Não uma completa estranha que não quer saber nada de nós. Uma pessoa a quem a carta desperte para uma memória desvanecida de mim, que não se surpreenda com as minhas palavras, mas sim com o meu interesse em dizer alguma coisa.
O senhor Luís da Loja vinha de bicicleta entregar o correio e fazia soar a corneta apertando o punho de borracha à porta dos destinatários. Um toque prolongado como uma lamúria e dois breves e alegres no fim. Naqueles três toques ele resumia o teor de todas as cartas; as notícias dolorosas que perduram mais tempo na memória, e as notícias boas que deixam um breve lampejo de felicidade, como se fosse obrigatória a felicidade, e não tivéssemos que nos sentir gratos por ela. O senhor Luís da Loja conhecia o remetente e o destinatário de todas as cartas, sabia de todos os encontros e desencontros da vida dos correspondentes; era como o médico de família da saudade. – Uma carta do seu filho; quer que lha leia? E os olhos analfabetos a sorrirem. – Sim, p'la alma dos seus, qu'eu no sê uma letra. Que diz ele?
Não queria que recebessem de mim uma carta assim. Não queria despertar sentimentos fortes em ninguém. Queria apenas pousar de leve na vida de alguém, chegar e partir como uma brisa, como uma folha solta trazida pela aragem e que deixa uma breve sombra na leitura de um jornal, que distrai de uma dor por um minuto, que alivia uma mágoa ou quebra um riso. Que despertasse apenas uma breve curiosidade, que levasse apenas a um ténue esforço de memória para alguém se lembrar de mim e me imaginasse a escrever a carta, não como eu a tivesse escrito realmente, mas como a sua imaginação me recriasse a fazê-lo, de modo a que eu passasse a ser apenas um produto da sua fantasia, e assim, me tornasse em algo íntimo. Íntimo, mas sem a partilha física dos corpos, sem a mútua devassa dos afetos.
Já escrevi cartas de todas as maneiras, até sobre o carregador de uma arma, só pela urgência de dar a saber que estava vivo. É muito diferente escrever de casa para alguém que está longe, não sabemos bem onde, e escrever de longe, de onde não sabem de nós. Onde nós também não sabemos bem de nós. A mata misteriosa a separar-nos de tudo o que nos é familiar, e o apelo para comunicar com quem nos tem no pensamento. A vontade de responder a perguntas que não ouvimos, mas que sabemos terem-nos sido formuladas. Perguntas de que nos chega o significado mais profundo, mas não as palavras que o transportam. E o apelo para responder, justamente as palavras, as palavras que faltam, porque o significado é sobejamente conhecido. Depois o prazer de desenhar as palavras no papel. O conforto das palavras escritas, físicas, quase tangíveis, a darem densidade à imaterialidade dos sentimentos.
Mas agora, nesta noite em que o computador me avisa que recebi mais um e-mail ou alguém me chama no Messenger, queria sentar-me na pequena mesa tosca e acanhada de onde via os fogos-fátuos no cemitério de Aguim num fim de tarde de verão, e escrever uma carta para uma pessoa que mal me conhecesse, e que ficasse surpresa por eu ter mandado notícias, não por mim, não por ela, não pelo que dissesse; apenas porque isso implicaria uma certa dedicação, uma certa humanidade numa cadeia de esforços de várias pessoas para que a carta chegasse ao destino.
O cabo de dia a ler em voz alta o nome de um soldado, e um braço alegre a pegar no aerograma. Os olhos sem conseguirem ler devido à ansiedade. As palavras escritas por todo o papel amarelo do aerograma e depois a apertarem para o fim, para caberem mais, e nas margens também, porque as despedidas são sempre difíceis, mesmo quando são feitas de tinta sobre papel. Agora os olhos sem conseguirem ler devido às lágrimas desfocarem tudo. Aquelas palavras sempre tão iguais, sempre tão previsíveis, mas a despertarem sempre a emoção da surpresa.
Outro e-mail a chegar. Um contacto a chamar-me no Messenger. Este falso dom de ubiquidade que temos ao contactar em simultâneo para vários lugares do mundo. Todos em contacto com todos, para todo o lado, a toda a hora, sem aparente intermediação.
O cabo de dia a ler para si o nome do soldado Lourenço. Um soluço a calar a voz. Boas notícias e nenhum braço alegre. Os soldados calados a guardarem luto. O cabo de dia passa para baixo o aerograma que era para o Lourenço e continua a chamar os soldados um a um.
A pior coisa que se pode escrever é uma carta para um soldado já morto. Quando o aerograma chegar devolvido por não ter encontrado o soldado Lourenço haverá alguém como o Sr. Luís da Loja que fará soar uma corneta? Alguém como o médico de família da saudade a dizer: "Uma carta do seu filho"?
O som dos carros no asfalto molhado ao fundo da avenida a resgatarem-me o som do mar do fundo da memória, como algo irremissível, e eu a pegar na velha caneta de tinta permanente e a escrever: Cara prima,…
Quem sabe, talvez daqui a quinze dias do outro lado do mar, alguém como o senhor Luís da Loja, a buzinar a bicicleta:
– Tem uma carta pra você do exterior. De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.


28 janeiro 2009

O Mistério da Foto da Capelinha de S. José


O sótão da casa da adega é um amontoado de lixo. E este amontoado de lixo é a arqueologia da minha vida. Objetos mortos; amortalhados de pó. Cadáveres de objetos. Objetos quietos no tempo à espera que os esqueçam de vez, para que possam finalmente dissolver-se na terra mãe de onde vieram.
Avanço furtivamente, com o sentimento de quem profana um túmulo. Afasto as teias de aranha que parecem panos impregnados com a alma do tempo, e que boleiam a forma dos objetos, como um lençol cobrindo um cadáver.
Sopro o pó de uma enchó do meu avô, e ela parece que acorda, ganhando humanidade. Um foicinho da minha avó. Uma podôa do meu pai. Um bastidor da minha mãe. Sem a mortalha de pó, ressuscitam e parece que procuram as mãos dos donos, as mãos que calejaram, as mãos que os moldaram a eles. Não são objetos em série, são objetos feitos pelo uso, que ganharam o jeito do dono; noutras mãos seriam maljeitosos. Eram prolongamentos dos braços, como próteses ortopédicas; partes sobrevivas dos meus antepassados.
Caiu-me à frente uma caixa de papel levantando uma nuvem de pó.
Quando a nuvem de pó se dissipou, um grupo de pessoas olhou-me de frente. Imóveis. À medida que os meus olhos procuram os pormenores da fotografia, parece que se movimentam um pouco.
A sua imobilidade dá-lhes um ar sarcástico, parecendo desafiar-me, e dou por mim a pretender apanhá-los na fraqueza de um movimento. Desvio o olhar para uma mancha do papel e volto a prestar-lhes atenção. Esta disputa demora uns segundos; o suficiente para se tornar uma patetice. Mas não consigo dominar-me. Os meus olhos traem¬ me e voltam sempre àquele jogo, como que atraídos por aquelas figuras que parecem zombar de mim, olhando-me como um friso de espectadores estáticos mas atentos, em frente do palco; suspensos da ação que decorre aqui, onde eu, o ator, devesse dizer a próxima fala, efetuar o próximo movimento.
Há um pormenor da fotografia que acaba por me prender a atenção. A posição carinhosa e protetora do meu avô, segurando-me pelos ombros. O meu avô tinha uma má relação com os seus sentimentos. Não era homem de grandes manifestações de afeto, o que lhe valeu a alcunha de Vinagre. Lembro-me que me embalava cantando canções obscenas; e essas canções são a única manifestação de afeto de que me recordo. Vê-lo assim naquela atitude carinhosa e protetora faz¬ -me subir um novelo de saudade, lentamente até à garganta, vindo não sei de que memórias.
O céu ao fundo, entre as árvores, está reduzido a uma ausência de cor, devido ao monocromatismo esquálido da fotografia.
Envolvendo a capela, algumas oliveiras evitam que a fotografia pareça despida. Os ramos pararam para sempre, alheios à aragem da tarde de verão.
Sim, é de tarde porque as sombras projetam-se para nascente, e é verão porque o meu avô está de camisa de manga arregaçada. Os ramos das oliveiras pararam para toda a eternidade quando o clique da máquina se fez ouvir.
Não é um clique. É o som da cortina, do obturador e do diafragma da máquina em acorde, antes de ser substituído pelo estalido insípido das máquinas digitais. Aquele ruído que fazia com que as pessoas se descontraíssem da pose forçada que mantiveram durante os últimos preparativos do fotógrafo. Mas não se descontraem logo, respiram fundo primeiro, olham umas para as outras e depois é que mudam de posição, como se não fosse permitido ficarem como estavam depois da foto tirada. De seguida as conversas interrompidas continuam pouco a pouco a reformularem-se.
O fotógrafo é amador; um fotógrafo profissional fotografaria o grupo mais de perto, para se conhecerem melhor as pessoas, ou mais de longe para não cortar o pináculo da capela que tem uma estranha forma de flecha com uma cruz em cima.
O fotógrafo é seguramente o meu tio brasileiro, porque só ele reuniria parentes afastados para uma fotografia; para levar como recordação quando voltasse para o Brasil.
O fotógrafo afastou-se um pouco para a direita, muito pouco, só o suficiente para não cair num buraco que está no chão. Atrás do buraco está uma enorme pedra com cerca de meio metro de altura, de forma vagamente paralelepipédica.
Isto não aparece na fotografia; nem nesta, nem em nenhuma outra que eu tenha visto, decerto, devido ao baixo valor estético que os fotógrafos veem naquele conjunto. E por acharem uma falta de bom senso manter-se assim uma pedra daquele tamanho com um buraco à frente, durante todo o verão; desde o dia de S. José, em março, até ao dia da Nossa Senhora das Febres, em setembro, mesmo em frente da capelinha.
Através dos séculos um culto celta veio desaguar assim na minha infância. Um aras onde um druida pontificava a adoração à deusa Eostre, ou um menir, fálico e imponente, celebrando a fecundação da terra, ou uma antes alinhada com o ponto exato em que o equinócio da primavera daria nascimento ao Novo Ano Solar, mal a linha do horizonte partisse a meio o disco do sol.
Um ritual desgastado pela viagem penosa através dos tempos, resistindo a todos os invasores, a todos os novos cultos, à ciência, à técnica… a tudo, até restar esta reminiscência resgatada da vizinha povoação abandonada de Vila Franca, acompanhando a imagem de S. José, resgatada também, quando morreu o último habitante que teimava em acender todos os dias o lume na lareira da sua casa, na povoação assombrada já pelos insuportáveis silêncios dos ausentes.
E, um dia, cumprindo a mais brutal lei da Natureza, essa reminiscência que a tanto resistiu, acabou finalmente por sucumbir.
Sucumbiu à arrogância dos ignorantes e à prepotência dos espíritos pragmáticos, de quem alia as tradições populares à falta de desenvolvimento.
Enquanto estava assim desenterrada, já só servia para marcar a época, de equinócio a equinócio, em que os mais humildes de entre os humildes podiam descansar os seus corpos da fadiga; dos rigores da labuta nos campos e da crueldade do estio, nalguma sombra que a Natureza, mais próxima deles, lhes oferecesse com compaixão, impondo-se à distante e estúpida inclemência dos homens, a mesma inclemência estúpida que lhe deu fim, reduzindo finalmente esse falo monolítico à total impotência, estilhaçado em brita, e enterrado definitiva e ingloriamente, debaixo de uma camada de alcatrão.
O poder local ganhou mais umas eleições e a terra ficou viúva.
Embora fora de cena, a pedra da sesta aguarda ali, um pouco atrás do fotógrafo, a festa da Nossa Senhora das Febres, em setembro, para ser enterrada. A festa que mais se aproxima do novo equinócio, depois de o Sol ter cumprido a sua incansável missão de mostrar aos homens as etapas do tempo.
Então terminará mais uma etapa para os humildes, a do descanso depois do almoço; ou melhor, depois do jantar, que assim se chamava a segunda refeição do dia em Aguim, pois a bucha é parca mas é comida com orgulho, e as palavras, se não alteram a essência das coisas, podem até fazer-nos crer que chega para empanturrar o estômago, aquilo que na realidade não enche a cova de um dente.
O almoço é de manhã, com o resto da ceia da véspera, e por isso não é, nem lhe chamam pequeno, que a enxada é pesada e não se mexe sozinha.
O enterramento da pedra é um ato pouco festivo. A festa é em Anadia, aqui parece mais um funeral; ou não se tratasse de oficializar a perda de um direito laboral, o descanso da sesta.
No dia de S. José, a 19 de março, é uma festa dentro de outra festa. Os jazes, como começam a ser chamados os pequenos grupos musicais em que os metais veem substituindo os acordeões e os instrumentos de corda, ficam a tocar sozinhos ao despique, nos coretos do Largo do Sobreirinho, e as pessoas veem juntar-se em torno da entrada da capelinha para assistir a uma outra competição: uma parelha de cavadores tenta superar em rapidez os que no ano anterior desenterraram a pedra da sesta.
E ela ali está ainda, fora do enquadramento da fotografia, ela e o seu buraco, aguardando o equinócio do outono para fecundar a terra que há de germinar no próximo equinócio da primavera.
A mancha do Arvoredo apenas salpica a margem esquerda da fotografia. O Arvoredo não é um arvoredo, é o Arvoredo. O substantivo comum ganhou dignidade de topónimo ou até de nome próprio. Se procurar entre as páginas dos meus sonhos de infância, a silhueta daquelas árvores são o papel de cenário de todas as minhas aventuras imaginadas.
Neste dia não era domingo, nem feriado, apesar das roupas domingueiras. Era dia de festa, porque o meu avô está de gravata. E como sempre, com a cabeça inclinada para o lado. Progressivamente passou a incliná-la também um pouco para trás, o que lhe dava, não sei porquê, um ar importante. Aparece assim, em todas as fotografias que lhe conheço, com aquele torcicolo patriarcal.
As crianças, no primeiro plano da fotografia, têm blusas brancas, por ser um dia especial. Um dia de festa em pleno verão. Seguramente era dia da N.ª Sr.ª do Ó.
As crianças não olham para a máquina para ficarem na fotografia. A fotografia para elas ainda era uma arte desconhecida, por isso, não dão qualquer importância ao fotógrafo, não olham para a máquina como esperaríamos de quaisquer crianças; estão mais interessadas naquele grupo de pessoas que ficaram quietas e caladas de repente, e viradas todas para o mesmo lado.
Alguma coisa, no entanto, chama subitamente a atenção de uma das jovens que estão sentadas no primeiro degrau. Deve ser suficientemente interessante, para uma delas chamar a atenção da outra, que no momento crucial da fotografia esquece a pose e olha para trás.
Quisera ser eu que tivesse passado na estrada, e quisera ter despertado, eu, a atenção daquelas jovens. Um olhar apenas, através dos tempos. Eu da idade delas, a caminhar despreocupado, com um fato de festa também, e elas a desviarem o olhar, do fotógrafo para mim, a estragarem a pose porque eu passei na estrada, a cochicharem um segredinho, a sorrirem uma cumplicidade, a incendiarem uma provocação. Tudo em menos de um pestanejar. Uma sinfonia inteira numa única nota.
O som dos foguetes distrai-me o suficiente para que avance demais e não consiga corresponder com naturalidade àquele olhar. Continuo o meu caminho em direção à banda de música que em breve toma conta da rua. Dirige-se para casa de um dos mordomos do ano que vem que os aguarda com vinho e chanfana e vai receber um foguete que guardará como testemunho.
O grupo de pessoas a posar para a fotografia abandonou a pose e aproxima-se para ver melhor a banda.
A minha avó veste roupas muito claras, o que assegura que ainda vivem todos quantos ama. A minha mãe... a minha mãe é muito jovem…
É jovem demais…
É jovem demais, para ser eu quem o meu avô segura pelos ombros...
A banda e toda aquela gente passam por mim, como a água de um rio, que avança contornando, indiferente, os obstáculos. Passam por mim, as pessoas e o tempo, que eu não pertenço a este tempo, ainda não nasci; sou um fantasma de um tempo futuro que olha especado para o passado congelado numa fotografia.
De súbito as formas ganham opacidade. Deixam de ser representações de pessoas e árvores, e regressam à sua condição primária de manchas de tinta sobre o papel; e eu sinto o pânico de Narciso traído pelo Tempo, ao descobrir, não a minha imagem envelhecida sobre o lago, mas a imagem de um estranho no meu lugar; que nunca conheci, que jamais conhecerei; que me rouba o carinho póstumo do meu avô. Uma história a que não pertenço. Um lugar e um tempo irremediavelmente estranhos para mim.
Reponho a foto na caixa de papel como quem fecha a tampa de um caixão, para impedir que um cadáver me assombre.
Só a luz do Sol me restitui a confiança, no terraço da casa da adega. Paro um pouco a olhar o casario e a Capelinha de S. José ao fundo.
Ali, um dia, alguém tirou aquela foto à minha família antes de eu ter nascido, antes de eu ter os privilégios de filho único. Um momento no tempo em que tudo existia do mesmo modo, mas sem mim, e em que tudo fazia sentido na mesma. Sinto-me um mero acidente na inexorável consumição do tempo.
Um leve percalço, e tudo teria levado um rumo diferente, um rumo que não me incluiria neste mundo.
E a realidade constrói-se-me sem mistério nenhum, sem transcendência, sem poesia sequer. Eu, ou qualquer outro no meu lugar, não faz a menor diferença.
Parto dali como um proscrito. Fujo em busca de alguém que me conheça. Alguém que me assegure a existência com um átimo da sua atenção; porque só o afeto que recebemos nos garante que não somos apenas um acidente irrelevante; um rosto desconhecido numa foto antiga.


28 maio 2008

O Sino da Minha Aldeia

Diziam que um dia o roubaram. Diziam que um dia o resgataram. Os velhotes contavam coisas sobre ele como se se tratasse de um velho amigo. E contavam sempre como se fosse a primeira vez. Não para ensinarem nada, mas porque mastigar as palavras dava gozo.
Ouviam-se uns aos outros à porta de uma taberna, só para terem a certeza que o tempo não tinha parado.

Mas apesar do consolo que as badaladas lhes davam, assegurando-lhes que as suas vidas continuavam prosseguindo, precisavam do som familiar e cúmplice do velho sino de bronze da torre da capela de Aguim para terem a garantia que estava tudo na mesma.
Os velhos só não precisavam do sino da capela para saber as horas; nos dias frios de Inverno sentavam-se ao sol, nos dias quentes de Verão sentavam-se à sombra, e iam mudando de lugar pela tarde fora a perseguir o conforto que a Natureza lhes oferecia, assim de borla, à velocidade que o sol marca as horas no chão com a sombra das coisas, e isso bastava-lhes.
Falavam de assuntos para nós totalmente misteriosos, de outros tempos, de outras vidas, coisas que tinham a idade do velho sino de bronze.
Contavam coisas de uma guerra que tinha havido na Europa e onde um deles tinha combatido. Os olhos do veterano parecia que deixavam de ver as coisas em seu redor enquanto falava, e os outros faziam um raro silêncio de solenidade.
De vez em quando o taberneiro trazia-lhes uma rodada e eles davam gargalhadas de prazer, enquanto nós passávamos por eles como se a nossa história e a história deles se tocassem apenas, como dois livros abertos ao acaso que roçassem levemente um no outro.
Eles ficavam tentando segurar o Tempo e nós levávamos o Tempo connosco. Descíamos o Barreiro para irmos nadar no rio da Ribeira. Que voltas deram estas palavras através dos tempos para que se diga hoje que um rio pertence a uma ribeira? Tomávamos banho nus e tínhamos que esconder bem a roupa para que as lavadeiras, mais abaixo, não no-las viessem roubar, decerto só para nos verem em pelo.
Como aquele expediente já não resultava, vinham às vezes protestar pelo nosso indecoro, e nós então, nadávamos de costas para que o nosso indecoro fosse realmente visível. E o sino de Aguim ia dando as horas para quem as quisesse ouvir. Se prestássemos atenção ouvi-las-íamos mesmo a esta distância.
Da Ribeira até ao Peneireiro havia muito percurso possível, mas nós não escolhíamos o menos longo. Nenhum de nós era um estudante aplicado, mas todos sabíamos que nem sempre a reta é o caminho mais curto entre dois pontos; ou isso, ou as árvores de fruto e as melhores videiras, faziam com que às vezes demorássemos a tarde toda para chegar ao Peneireiro.
O Peneireiro era o único sítio do mundo onde se podia comer uma sandes pelo preço do pão. Pedíamos um copo e uma sandes de cinco tostões, e o taberneiro pincelava um pão da Mealhada com molho de leitão e enchia o copo do próprio pipo.
E o sino ia dando as horas sem nós nunca darmos por isso. O sino pertencia à própria vida, como o sol e a sombra, como a água do rio da Ribeira, como as lavadeiras matreiramente escandalizadas com a nossa nudez, como as gargalhadas temperadas com um tinto, dos velhos à porta da taberna; e nós tínhamos a idade de quem nunca quer saber as horas.
Ele batia, bronze no bronze, pacientemente, sem pressas, mais convidando à preguiça que ao labor. Nós não ouvíamos e os velhos fingiam não ouvir, uma após outra, as badaladas chocalheiras do velho sino de Aguim; todas as badaladas necessárias para as pessoas saberem a quantas andavam. O som viajava por sobre as casas e os campos, como um lençol sonoro; e se fossem as trindades, os camponeses paravam como se fossem dizer as Avé Marias, aproveitando para se libertar um pouco do jugo do trabalho da terra. Os homens paravam as conversas, as mulheres os cantos, com que iludiam o castigo da lavoura. E uma paz imensa caía sobre eles à medida que as badaladas do velho sino de Aguim viajavam nas ondulações do ar por sobre as suas cabeças, como uma bênção divina.
Mas os velhos só ficavam em silêncio quando o ex-combatente falava das agruras da guerra. 
Durante toda a minha infância a guerra era aquele brilho líquido nos olhos do veterano a recordar as torturas às mãos dos alemães.
Como é estranho que não fosse de ódio! Parecia antes um grande desgosto. Mas que pode sentir um filho sacrificado pela pátria e que esta abandona nas prisões do inimigo? Ele a repetir as imprecações dos alemães em várias línguas na mesma frase. – Allez raus come on! E depois os olhos líquidos e a voz ecoando: camóne camóne…
E durante anos e anos, de geração em geração, até aos dias de hoje, a memória dessa imprecação perdura como uma condecoração póstuma na alcunha dos seus descendentes.
E depois vinha mais uma rodada e a conversa ganhava gargalhadas de novo.
As mesmas conversas de sempre. Como se fosse a primeira vez que as contavam, a fingirem que nem se davam conta.
Tal qual como faziam ao ouvir o sino. E ele, chegando a altura, dava as horas; duas vezes, para os distraídos.
E a hora chegou, foram embora. O tempo passou num instante.

09 março 2008

A Incerteza do Sol Nascente

Ao abrir a porta iria jurar que te ouvi dizer “Já viestes?” como era costume, e quase respondi “não mãe, ainda lá estou”, como sempre respondia com o meu sarcasmo que tanto te desconcertava, mas que nunca conseguia irritar-te; mas depois veio-me à memória a tua mão estendida ao lado do teu corpo, na cama do hospital, e a casa tornou-se vazia de um momento para o outro.
A porta da rua fechou-se sozinha como é hábito nos filmes de suspense e eu olhei para trás e depois deixei-me ficar a juntar as letras, vistas de trás para a frente, à transparência na vidraça, alinhando-as mentalmente: “Aluga-se.”
Os sons dos meus passos prolongam-se nas paredes, desconfortáveis sem o aconchego dos móveis. A cada porta que abro para uma dependência vazia, o desalento de um livro sem palavras.
Agora a tua mão apareceu na minha memória, vazia e inerte no colchão do hospital e eu percebi porque não me perguntaste se eu já tinha vindo. A mesma mão que segurou a mão do meu pai, um ano antes. A mão dele a levantar-se do colchão com gestos sincopados de inseto, tateando o ar em busca de um último afeto, e a tua a pegar-lhe num derradeiro ato de amor. Um segundo depois o braço dele transformou-se num tentáculo flácido de molusco e a mão escorregou da tua para o colchão e do colchão para o soalho e, num movimento pendular parou ao tocar o chão, a mostrar que o tempo tinha acabado.
Ninguém quer saber o que umas paredes nuas e frias guardam em si, dos seus moradores, como uma peça de roupa que soubéssemos ter sido usada por um ente querido. Mas será que uma vez tocada, cada parede destas não guardará para sempre um átomo que seja da mão que a tocou? Não guardará o eco das palavras ditas? Das alegrias e das mágoas? Das imprecações e das preces? Será que só na memória dos homens perdura por algum tempo o que uma vez aconteceu, e que tudo o mais é volátil; como a promessa que fizeste aqui, quando me viste partir para a defesa serôdia do império moribundo? Será que estas paredes guardam ainda o teu apelo, já que a Virgem de Fátima se esqueceu dele?
Havia dias, como hoje, em que o pôr-do-sol pintava tudo em cores quentes e do terraço eu olhava-o seguro de que Deus o haveria de fazer nascer no dia seguinte, e depois ia dormir sem remorsos nem temores. Mas hoje sei menos do que quando era criança; olho o sol e não acredito que Deus tenha as coisas sob controlo. Pode muito bem acontecer que se esqueça de o fazer nascer amanhã. Hoje não irei dormir sem remorsos.
Ao menos se a voz quase humana de um violoncelo acordasse o calor das vozes esquecidas; ou o som da chuva na vidraça, tão próximo da música, restituísse a alma a esta casa deserta; ou faltando tudo o mais, se ao menos um eco, que tivesse ficado reverberando por entre estas paredes dissesse o meu nome e perguntasse “Já viestes?” só para eu ter a certeza que regressei a casa…
Espreito pelo vidro sujo da janela para o pátio onde falta a velha figueira. Como morreu a velha figueira? Sinto uma dor imensa por não me lembrar; como se tivesse perdido a oportunidade de lhe dizer algo de muito importante e íntimo; como se tivesse remorsos de não ter vertido uma única lágrima pela sua morte. Até parece que uma música parou repentinamente dentro de mim. Talvez por isso a laranjeira se recuse a dar laranjas, ressentida pela minha ingratidão. Não sabe que as comíamos apenas por amizade, dado que eram um pouco azedas “São muito boas para acompanhar o leitão” desculpava-a o meu avô, que a conhecia desde pequenina… e nós sorriamos de ternura.
Também devo ter sido infeliz aqui, mas não me lembro.
Só me lembro de estarmos à mesa a falar todos ao mesmo tempo e de vir o cheiro bom da urze a arder na lareira. Porque será que punham urze no lume? Jamais o saberei agora. Talvez fosse para tornar mais aromática a minha saudade futura.
Sinto que um poema, ou qualquer coisa parecida, nasceu algures no fundo de mim, ao pensar nisto, mas ainda não lhe conheço as palavras; só quando a música regressar ao meu corpo ele virá à superfície, palavra por palavra. Espero saber colhê-las como flores, ou como frutos, ou como simples pedras a enfeitar a beira da estrada.

Como tudo deveria parecer mais harmonioso quando o Sol era o deus festivo e generoso que dava a luz e a vida. Como tudo deveria ser mais simples quando só se acreditava no que se entendia. Mas desde essa infância dos tempos, a humanidade evoluiu, transcendeu-se e finalmente ficou órfã ou a sós com um criador em que acredita humildemente, mas não entende.
O sino da capela de Aguim chama os fiéis acabrunhados e penitentes para a adoração do seu deus silencioso e invisível e eu olho o Sol belo e apocalíptico por entre o fumo dos incêndios de verão e comovo-me, incrédulo e órfão, até às lágrimas.

31 outubro 2007

Tempo: Adagio Sostenuto

Depois de descer as escadas de cimento, paro um pouco antes de saltar por cima do portão de ferro que dá para a rua. A minha rua não tem nome. Talvez um dia lhe venham a dar um nome, mas agora apenas posso dizer que é a minha rua e isso torna-a pessoal, íntima, como se de facto tivéssemos uma relação de posse mútua.
Já me encontro na rua agora. A minha rua. Passo como um fantasma, mal tocando o chão com os pés, para não denunciar a minha presença sob a janela do quarto dos meus pais que ainda estão no primeiro sono.
Felizmente umas notas soltas de trompete ajudam a abafar o som dos meus passos. Gosto de ouvir assim um músico à procura do caminho. Quase um exercício apenas. Notas rápidas para educar os dedos.
Ainda não se entende o discurso, é como se o Sr. António Carreto estivesse apenas a dizer palavras à toa que mais tarde haverá de dizer por uma ordem coerente. Agora o músico e o instrumento estão apenas a namorar, até se entenderem bem um com o outro. Um dia destes serão um só e desse casamento nascerá algo completo, um novo ser, que então terá vida própria e fará esquecer todo este trabalho de reconhecimento, de experimentação, de refinamento; mas algo me diz que o Sr. António Carreto gosta é mesmo desta parte. Acho que ele ensaia uma música como quem faz amor e é por isso que as notas saem para o ar frio da noite como investidas de um macho com cio, cercando a fêmea, repetindo os mesmos gestos, os mesmos sons, tal como num ritual de acasalamento.
Penso um bocado nisto e puxo de um cigarro. Sento-me no muro da casa da Ti Maria Adôa. Ainda é cedo e fico aqui um pouco a fazer tempo.
O Tirone do Ti Zé Sécio vem a coxear um pouco e fareja os meus pés, as minhas pernas, e depois de dar duas voltas à minha frente deita-se com o focinho sobre o meu pé direito. Os cães gostam de mim. Perdão, o Tirone gosta de mim, somos amigos. Generalizar neste caso é até falta de consideração.
Alguém fala alto. Um homem e uma mulher, mas tão longe que não consigo perceber o que dizem. As pessoas falam alto nas aldeias. Porque será? Talvez o que aconteça é que se ouça melhor nas aldeias, não há ruído de fundo: automóveis, elétricos, autocarros e tudo isso. O Tirone parece que ouviu algo importante porque se levantou alvoroçado e esticou a cabeça, depois ficou um momento como que indeciso, mas parece ter cedido à preguiça e voltou à sua posição anterior com a cabeça sobre o meu pé direito.
O Afonso e o Zé estão atrasados e eu ponho-me a andar sem eles.
Aqui, onde escrevo, depois de olhar ao longe o casario do Tovim, vejo no relógio do Windows que já é tarde também.
Devia ir dormir, mas apeteceu-me de repente apanhar um pouco de ar fresco. Fui um pouco à varanda e deixei-me ficar a reparar no ruído de fundo que realmente existe, um "hammm…" não é bem um ruído, é apenas uma diferença no ar, ou na alma, sei lá. Se eu gritasse daqui o casal que desce a rua lá em baixo não me ouviria e lembro-me bem que em Aguim as pessoas conversavam de uma casa para a outra, a distâncias inconcebíveis.
Quem sabe, talvez seja apenas porque esta rua tem um nome; não é a minha rua.
O Tirone segue atrás de mim enquanto me dirijo para o Largo do Sobreirinho. O Largo do Sobreirinho não é uma praça, nem uma rotunda e muito menos um cruzamento. O Largo do Sobreirinho não é um local de passagem; é um local de confluência, como um lago onde as ruas vêm desaguar. O melhor que o Largo do Sobreirinho tem, é não ter nada. Na verdade tem uma bomba lá ao fundo para onde me dirijo, mas para além disso não tem mais nada. É como uma caixa vazia ou uma folha de papel em branco; podemos fazer dele o que quisermos. De certo modo é como o facto de a minha rua não ter nome.
Cada um o concebe como coisa sua. Nós, que habitamos aqui, temos orgulho no Largo do Sobreirinho; é como um resquício de territorialidade tribal. Quando os do Robelho ou da Capela vêm para aqui jogar à bola nós sentimo-nos invadidos.
Sento-me na borda do grande cilindro de cimento do poço da fonte e fico à espera já desconfiado com a demora. Decerto aqueles gajos não virão.
Em casa do Faria ainda se ouvem vozes e a luz que passa pela janela da cozinha pisca quando alguém lhe passa à frente. Penso que tenho dois tipos de amigos: Os do dia e os da noite, o Faria é dos do dia, e a sua amizade vai ao ponto de ter um objetivo a meu respeito, um projeto: ganhar-me para as coisas do desporto. Acho que já desistiu de mim para o futebol e agora investe no atletismo. Já medimos rigorosamente cem metros, que afinal é a distância entre três postes de eletricidade, e uma vez por semana põe-me a correr como um desalmado; mas não consigo descer dos onze segundos e um quarto. Não sei como é que ele mede um quarto de segundo no relógio de pulso. Já decidimos que temos que improvisar uns apoios para o arranque, porque faço os últimos cinquenta metros em cinco segundos e o problema está portanto no arranque. Acho que ele me engana para me entusiasmar e eu finjo que não dou por nada para ele continuar a insistir. Se calhar é isto que é a amizade.
Batem uma porta e a luz apaga-se na casa do Faria. As vozes aumentam um pouco e depois vão-se esfumando lentamente e quando o silêncio prevalece o meu amigo do dia esfuma-se também do meu pensamento.
O Tirone levanta-se e põe-se a cardar o pelo do pescoço com uma pata traseira, depois acalma-se e levanta-se de novo e volta a catar-se, ganindo de nervosismo ou de dor. Senta-se finalmente ainda um pouco agitado.
Da rua do Robelho vem alguém a correr, surge debaixo da luz do poste por instantes e desaparece pela ladeira do Arvoredo.
Agora, a noite. Apenas a noite. Eu, o meu amigo Tirone e a Noite.
Acho que não vêm já, começa a ficar tarde, daqui a pouco desisto.
À noite, Aguim transmuta-se, não se transfigura apenas como qualquer outra terra, não; transmuta-se, isto é, passa para outra esfera, outra dimensão, passa a ser outra coisa. Algo fechado sobre si, onde identificar alguém pode ser considerado um abuso, uma devassa. As luzes pitosgas no cimo dos postes, cuja rede elétrica é ainda do tempo da Cooperativa, não alumiam nada e são vistas como uma ameaça. É comum as pessoas passarem do outro lado da estrada, onde será mais difícil reconhecê-las.
Acendo mais um cigarro enquanto espero por aqueles gajos e ouço o Tirone a ressonar. Eu, a noite de Aguim e um cão que ressona.
Olho a última frase no monitor do computador, com o cursor a piscar e dá-me a ideia que não foi escrita por mim. "Eu, a noite de Aguim e um cão que ressona." Li-a em voz alta e soou-me como um título de qualquer coisa, um estribilho, algo que tivesse ouvido algures; algo que parece mais do domínio público do que meu.
Ao escrevermos um pensamento, ele deixa de ser um pensamento. Mas voltará a sê-lo quando for lido. Porém, será um pensamento pensado por fora, como é vista a imagem que os outros têm de nós. Agora, à distância de tantos anos, quem está sentado no poço da fonte do Sobreirinho não sou eu, é alguém que vejo de um futuro que já chegou e que me dá uma perspetiva de espectador; ou por outras palavras, ao ler aquela frase, como um leitor a leria, quebrei o sortilégio da escrita, o encanto da fantasia, e fiquei confrontado com a realidade, que é sempre menos cativante. Ou isso, ou preciso de ir dormir.
Bem, já não vou esperar mais. Eles não virão. Não sei o que aconteceu, mas o pior é que agora não estou com disposição para passar o resto da noite no café e também não tenho sono.
Acende-se uma luz na casa do Sr. Alves e ao longe ouve-se um ruído de motor que se vai aproximando, parece ser uma motorizada. Vem do Peneireiro e passa por mim. Leva dois tipos. A luz da motorizada ilumina-me por um segundo e um deles grita: "Eh Manel!" e seguem para o Robelho. Param assim que saem do largo e não faço a mínima ideia de quem são. Ouço-os falar um com o outro. O Tirone acordou e apontou o nariz para o sítio de onde vêm as vozes, quieto como se fosse um animal empalhado.
Há dias em que nada acontece em Aguim. Em que o tempo parece a água congelada de um rio. Podia levantar-me do poço da bomba do Sobreirinho, onde estou, mas este desalento que sinto por não ter nada que fazer este serão, imobiliza-me. Devo parecer um animal empalhado também.
Começo a andar sem que isso seja verdadeiramente um propósito meu e o Tirone assustou-se. Caminho em direção à Capela com o Tirone a meu lado. Às vezes dá uma corridita para alçar a perna e urinar, e volta para o meu lado. Urina em todos os objetos que sobressaem da monotonia da estrada. Reparo novamente que está manco.
Dou conta que também caminho do lado oposto das luzes da rua. Acendo outro cigarro. Hoje a minha mãe disse-me que desconfia que eu fumo, e avisou-me que o tabaco me fará muito mal à saúde. Respondi-lhe que se fosse para me fazer bem à saúde eu tomaria óleo de fígado de bacalhau. Ela não percebeu a piada e eu fiquei na minha, já estou habituado a que o meu conceito de humor pareça idiota para a maioria das pessoas.
O sino da capela bate uma vez. O som fica um bocado a vibrar no ar como as ondas de um lago onde cai uma pedra, e depois o silêncio volta e fica só a memória daquela badalada solitária. Há poucas coisas que melhor simbolizem o tempo do que uma badalada de um sino velho. Uma hora. Outro dia começou. Quem repararia nisso se não fosse o sino? Não sei o que é o tempo, mas para mim agora o tempo é apenas uma coisa que não anda nem desanda. É um som metálico, vibrante, algo lúgubre, mas também familiar, acolhedor, que cria ondas no ar como uma pedra num lago.
A gente olha para o ponteiro grande do relógio da capela e vê-se bem que o tempo não anda, de repente dá um saltinho quando nos distraímos. O tempo é mesmo a coisa mais traiçoeira que existe, só quando não temos nada que fazer é que o tempo não anda. Distraímo-nos e pronto, já passou.
Bate novamente. Sorrio ao pensar que o sino de Aguim agiu como se se tivesse enganado e viesse dizer: "Agora é que é uma hora, há bocado enganei-me, desculpem." O espaço de tempo entre as duas badaladas não conta, foi um lapso, O sino da capela de Aguim baniu-o das nossas vidas. Não aconteceu. Para as pessoas que já dormem não faz diferença mas para mim e para o Tirone foi um ror de tempo. Para mim uma chatice sem fazer nada, para o Tirone, pelo menos duas mijinhas numa pedra e num poste de eletricidade.
Aqui, na avenida Elísio de Moura um carro faz chiar os pneus numa travagem forçada. Aguardei pelo som do embate, mas em vez disso ouviram-se duas buzinas diferentes, como se os carros, e não os condutores, estivessem agora a discutir um com o outro devido àquela travagem.
Às vezes apetece-me também travar a fundo para ver se ponho o Tempo a andar à velocidade que ele tinha em Aguim quando os velhos se sentavam à porta das tabernas a adorar o sol de fim de Verão e as velhas se sentavam no rebate da Capelinha de S. José a catarem as lêndeas com um pente de dentes muito fininhos para cima de um pano branco, sobre o regaço. É essa a velocidade certa para fazer as coisas de que se gosta de verdade, mas é tão difícil agora. O Tempo é tão veloz, há sempre tanta coisa para fazer ao mesmo tempo.
Parei um pouco aqui hoje em vez de ir dormir. Durante alguns minutos o Tempo desacelerou. Durante alguns minutos não tive nada que fazer; e é isso que é preciso para ler e para escrever, que são formas de conversar. É preciso não ter pressa para se poder conversar. É preciso não ter nada para fazer para cultivar a amizade.
Mais uma vez a história ficou para trás. Não faz mal, conversar é mais importante. Logo a retomarei sem pressa, como quem conversa à porta de uma taberna ou cata lêndeas ao sol.
Olho para trás e o Tirone está sentado no meio da rua ganindo baixinho e vendo-me afastar, com a cabeça um pouco de lado. Chamo-o batendo com a mão na perna e ele em vez de se aproximar poisa a cabeça no chão entre as patas. Chamo-o de novo e ele parece determinado a não sair dali. Entro no Largo da Capela e olho ainda mais uma vez para trás e ele continua com a cabeça entre as patas tristíssimo.
Reparo que na rua do Outeiro estão dois tipos a falar. Um parece zangado, o outro conciliador. O zangado esbraceja e avança, o conciliador abre os braços de vez em quando e vai recuando. Não parece uma rixa entre ambos porque falam em voz baixa. À medida que um recua e o outro vai avançando, desaparecem por detrás da casa dos Cerveiras. E eu desço a rua do café.
Ainda penso no Tirone mais uma vez. Porque será que não quis entrar no Largo da Capela? Será que os cães também rivalizam entre si, por uns serem do Sobreirinho e os outros da Capela?
Pela janela do café vejo o Toni a jogar às damas com o Ti 'Lexandre. O Toni está recostado na cadeira fingindo nem olhar para o tabuleiro e o Ti 'Lexandre levanta uma mão, com o polegar e o indicador a fazerem uma argolinha e esticando os outros dedos como se fosse empurrar uma pedra. Hesita. Recua. E na falta de melhor, aproveita para ajeitar o chapéu que tem pousado numa cadeira a seu lado. Depois fica pensativo, ligeiramente curvado para o tabuleiro. Ao lado, numa mesa de King, todos saltaram repentinamente numa gargalhada, olhando as cartas sobre a mesa, como se elas tivessem feito algo inesperadamente hilariante.
Tanto quanto sei, houve duas coisas que alteraram as noites de Aguim: A luz elétrica e o café. De facto nunca mais voltaram a ser a mesma coisa depois que o café abriu. Lembro-me perfeitamente dos primeiros dias em que as pessoas tomavam o ar solene de quem entra numa igreja. De como se sentavam com aprumo junto às mesinhas. Um velho de que já não membro o nome bebia a bica delicadamente com a colherinha. A maioria tomava o que sempre tomou nas tavernas: vinho tinto; mas não diziam "Quero um penalty" ou "Quero mais um petardo"; diziam com um maneirismo cómico: "Um copinho de vinho tinto se faz 'abor."
Sorrio ao olhar o nome pintado na parede "Café Nouo Dia". O Sr. Pinto a querer dar um toque vernáculo à inscrição e as pessoas a rirem-se do pintor: "Ó inganô-se, ó no sabe escrever…"
Durante algum tempo o Café Novo Dia trouxe a Aguim o ambiente que já não era comum em lado nenhum; de certo modo recuou no tempo para criar um espaço de sobriedade e bom gosto, e fez Aguim avançar no tempo até que um dia ficou a par com as invencíveis leis da concorrência e da vulgaridade, e mais uma vez as noites de Aguim mudaram para nunca mais voltarem a ser as mesmas.
O Tirone aguarda-me ao fundo da rua do café, deu a volta ao casario para vir ao meu encontro e está visivelmente feliz por me ver. E aqueles gajos que não apareceram. Se calhar o pai já descobriu que fomos nós que escaqueirámos a motorizada num acidente, a semana passada, e estão de castigo.
E regresso finalmente a casa com o Tirone que agora vai cheirando todos os sítios onde urinou à vinda para cá. E quando lhe parece que o cheiro não é suficientemente intenso renova a dose.
Uma janela pequena na noite. Quatro quadrados de luz amarela unidos por uma cruz. Por detrás da janela deve estar gente. Será um quarto? Alguém que faz serão? Alguém doente que acorda a meio da noite em busca de auxílio? Sinto que se desenrola uma história por detrás daquela cruz negra que segura os quatro quadrados de luz amarela no meio do casario e no meio da noite. Apetece-me chegar-me ao pé dela para conhecer essa história. A eterna curiosidade pela vida alheia que neste momento me atrai tanto como à maior coscuvilheira de Aguim. Por detrás daquela janela acontece qualquer coisa, existe uma vida, paixões, conflitos; um segredo que me exclui. E eu vou-me afastando cobardemente; eu e o Tirone, para longe daquela hipótese de acontecimento, para o meio de coisa nenhuma.
Será que um dia vou recordar esta noite em Aguim, em que não aconteceu nada? Eu, o meu amigo Tirone e o Tempo. O Tempo a passar tão lentamente; à velocidade em que se deveriam apreciar as coisas boas da vida. À velocidade das histórias da minha avó, que ia falando e mexendo com a tenaz para espevitar o lume, com um riso nos olhos que nunca desaparecia, mesmo quando o rosto ficava triste. Puseram-lhe o nome de Senhora do Ó quando era nova, por ser bonita. Depois o tempo dela passou, até chegar o meu tempo, mas os olhos quase sem verem nada, continuaram sorrindo, e as palavras vinham devagar, cansadas. Dá-me a ideia que não diziam nada, eram só palavras. Ditas sem pressa, só porque lhe dava prazer falar comigo. Como uma música que trauteasse para me adormecer sem ter em conta os versos. Dizia muitas vezes: "Parece que foi onte" e continuava a história que nunca tinha fim. As tenazes a espevitarem o lume, o rosto triste e os olhos sorrindo; os olhos sorrindo sempre. E não acontecia nada. Só o lume se alterava um pouco de vez em quando.
Parece que foi onte.