06 agosto 2007

Prefácio Para um Livro Qualquer





























O cavalo resfolegava cansado, o meu avô imitava uma rela com a língua a vibrar no palato e às vezes o chicote estalava no ar. Depois chegávamos àquela curva na estrada e eu levantava-me no cimo da carrada de mato para ver melhor.
Mal dávamos a curva aparecia o portão de ferro. Um portão sem paredes nem muros à volta, firmemente agarrado às suas ombreiras de pedra, parecia ter o préstimo de uma catedral no meio de um deserto. Uma imensa seara vinha a desdobrar-se pela encosta abaixo como um tapete dourado a esvoaçar ao vento, sem nada que o prendesse, a não ser aqui e ali algumas pedras dispersas que deveriam ser o que restava de um antigo muro. E o portão de ferro, cioso do seu papel, a interromper o caminho que entrava pela seara dentro.
Nessa idade eu tinha poucas dúvidas e tudo fazia sentido para mim nesta vida. Por isso aquele portão, estoico no seu posto, fascinava-me como a transcendência fascina os crentes que nunca questionam a razão de ser dos mistérios da sua fé.
Uma vez por ano, quando o meu avô ia buscar a carrada de mato àquele pinhal perdido numa encosta da Serra do Buçaco, eu erguia-me antes da curva da estrada para ver se o portão ainda lá estava, interrompendo o caminho que dava acesso à seara. Será que as pessoas paravam junto ao portão, o abriam, como quem abre a porta de armas de um quartel e depois o transpunham e fechavam de novo, para impedir os intrusos de devassarem a propriedade alheia, apesar de toda a seara em redor estar completamente desimpedida?
– Vô, para que serve aquele portão?
- Atão, prá ´brir e fechar, no é?
Como são insuficientes as coisas que vemos apenas com os olhos…
Que mundos invisíveis, que universos paralelos, que prodígios se nos revelariam para lá daquele portão, tal como o delirante País das Maravilhas se revelou para lá do espelho da pequena Alice?
Nunca consegui convencer o meu avô a parar para eu experimentar passar pelo portão, só para ver o que acontecia. Mas o cavalo resfolegava sempre logo a seguir à curva da estrada, talvez sentindo algo oculto ao entendimento humano, e imediatamente a rela do meu avô acordava-o para as coisas deste mundo.
Entretanto cresci e fui perdendo todas as certezas que tinha. Deixei de ir com o meu avô buscar o mato. Depois o cavalo morreu. Depois houve uma guerra e eu fui combater. Depois houve uma revolução e a guerra acabou. Depois o meu avô morreu também.
Acho que o mundo todo se modificou e nem uma só certeza de criança me acompanhou pela vida fora.
Mas um dia – porque nas histórias que começam quando somos crianças e se prolongam pela vida fora, há sempre um dia em que algo acontece que merece ser contado – um dia, o acaso levou-me lá, ao volante do meu velho Fiat 128, e dei por mim a querer pôr-me de pé para ver melhor a berma da estrada, e depois de dar a curva parei. Estranhei não ter ouvido o resfolegar do cavalo e a rela do meu avô. Não sei quanto tempo estive a olhar para o portão, assim, firmemente agarrado às suas ombreiras de pedra, no seu posto, como um soldado heroicamente resistente quando já todo o batalhão tivesse tombado e muito tempo depois de a guerra ter terminado.
E o Zé: — Que foi?
E eu a caminhar sem a menor hesitação para o portão.
– Que foi? E saiu do carro para me seguir. Levantei a mão esquerda a pedir-lhe que parasse e apoiei a mão direita no portão, mas quando estava já com a mão a empurrá-lo… "Que foi" insistia o Zé… assaltou-me a dúvida. Será que deveria fazer aquilo? Olhei para trás, para o Zé, que parecia temer pela minha sanidade mental e que dava ares de estar a ponto de intervir de uma forma mais coerciva, talvez por temer que eu pudesse pôr em perigo a minha própria integridade física. Mas eu fiquei imóvel com a mão apoiada no portão sem coragem para o abrir.- Não posso quebrar o encanto, disse eu, – isto faz parte do meu imaginário, não vou cometer este sacrilégio.
E o Zé a tentar manter a calma: – Que… foi?
– Não. É melhor não.
Recuei e fiquei a olhar o portão de longe.
Levei metade da viagem a explicar ao Zé toda aquela história e a outra metade da viagem a tentar convencê-lo que não voltei para trás por cobardia.
Tornei-me, com o tempo, quase um céptico, mas sinto a nostalgia do fantástico, se não do sobrenatural. O mais perto que tenho estado daquela sensação, tão próxima da transcendência, é quando abro um livro. Sinto sempre que vou entrar num mundo diferente. Ao ler a primeira palavra, o texto transporta-me logo para outro espaço, como acontece quando clicamos numa linha de hipertexto num computador; para outra realidade; não para a fantasia, mas para outra realidade, como imaginava que aconteceria comigo se atravessasse aquele portão, sozinho a guardar a imensa seara sem vedação.
Só eu tinha a certeza que passaria desta dimensão; só eu sabia que era possível entrar noutra realidade, como agora faço com os livros que leio.
Já fui de avião até ao norte da Europa e de navio até ao sul de África, mas nunca fui tão longe como quando viajei dentro de um livro, sem sair do meu sofá da sala. O Homem já inventou prodígios de tecnologia, mas nunca algo que tenha suplantado a invenção do livro: sem mais energia do que a da ponta dos dedos, sem mais realidade virtual do que a da capacidade de sonhar, e no entanto, não há lugar no mundo ou fora dele aonde não possamos ir. E quando quisermos regressar basta fechar o livro como quem bate palmas, e toda a fantasia se desvanece para dar lugar à realidade. Ir e voltar de um lado ao outro de tudo quanto se possa conceber, apenas com algumas gotas de tinta sobre umas quantas folhas de papel. E não são precisas mais que duas pessoas para isso: a que escreve e a que lê.
Será que estas minhas palavras terão também para alguém esse sortilégio? Conseguirão fazer alguém transpor os limites prosaicos da realidade e atravessar o pórtico improvável da fantasia? É esse o meu propósito e o meu desafio aqui: criar uma realidade paralela, com recurso apenas a palavras escritas.
Imaginem os aros das rodas da carroça a triturarem as pedras do caminho, a curva a aproximar-se, o cavalo a resfolegar e o meu avô a estridular com a língua para o prender a este mundo… e o portão solitário e orgulhoso a desafiar a sanidade humana. Não sei o que vos ficou da infância, mas se é verdade que lá deixei todas as minhas certezas, pelo menos esta capacidade trouxe comigo; e não há nenhum pragmatismo que me impeça de sonhar e nem nenhuma tacanha tibieza humana que me limite o fascínio pelo inútil, utópico e sublime mundo da poesia e nem nenhum portão servirá jamais apenas para abrir e fechar, que aberto ou fechado será sempre inútil. Mas é aí que reside justamente o seu fascínio: se for difícil abri-lo sonharei sempre com isso, se for fácil, preferirei mil vezes fingir que é difícil.