09 março 2008

A Incerteza do Sol Nascente

Ao abrir a porta iria jurar que te ouvi dizer “Já viestes?” como era costume, e quase respondi “não mãe, ainda lá estou”, como sempre respondia com o meu sarcasmo que tanto te desconcertava, mas que nunca conseguia irritar-te; mas depois veio-me à memória a tua mão estendida ao lado do teu corpo, na cama do hospital, e a casa tornou-se vazia de um momento para o outro.
A porta da rua fechou-se sozinha como é hábito nos filmes de suspense e eu olhei para trás e depois deixei-me ficar a juntar as letras, vistas de trás para a frente, à transparência na vidraça, alinhando-as mentalmente: “Aluga-se.”
Os sons dos meus passos prolongam-se nas paredes, desconfortáveis sem o aconchego dos móveis. A cada porta que abro para uma dependência vazia, o desalento de um livro sem palavras.
Agora a tua mão apareceu na minha memória, vazia e inerte no colchão do hospital e eu percebi porque não me perguntaste se eu já tinha vindo. A mesma mão que segurou a mão do meu pai, um ano antes. A mão dele a levantar-se do colchão com gestos sincopados de inseto, tateando o ar em busca de um último afeto, e a tua a pegar-lhe num derradeiro ato de amor. Um segundo depois o braço dele transformou-se num tentáculo flácido de molusco e a mão escorregou da tua para o colchão e do colchão para o soalho e, num movimento pendular parou ao tocar o chão, a mostrar que o tempo tinha acabado.
Ninguém quer saber o que umas paredes nuas e frias guardam em si, dos seus moradores, como uma peça de roupa que soubéssemos ter sido usada por um ente querido. Mas será que uma vez tocada, cada parede destas não guardará para sempre um átomo que seja da mão que a tocou? Não guardará o eco das palavras ditas? Das alegrias e das mágoas? Das imprecações e das preces? Será que só na memória dos homens perdura por algum tempo o que uma vez aconteceu, e que tudo o mais é volátil; como a promessa que fizeste aqui, quando me viste partir para a defesa serôdia do império moribundo? Será que estas paredes guardam ainda o teu apelo, já que a Virgem de Fátima se esqueceu dele?
Havia dias, como hoje, em que o pôr-do-sol pintava tudo em cores quentes e do terraço eu olhava-o seguro de que Deus o haveria de fazer nascer no dia seguinte, e depois ia dormir sem remorsos nem temores. Mas hoje sei menos do que quando era criança; olho o sol e não acredito que Deus tenha as coisas sob controlo. Pode muito bem acontecer que se esqueça de o fazer nascer amanhã. Hoje não irei dormir sem remorsos.
Ao menos se a voz quase humana de um violoncelo acordasse o calor das vozes esquecidas; ou o som da chuva na vidraça, tão próximo da música, restituísse a alma a esta casa deserta; ou faltando tudo o mais, se ao menos um eco, que tivesse ficado reverberando por entre estas paredes dissesse o meu nome e perguntasse “Já viestes?” só para eu ter a certeza que regressei a casa…
Espreito pelo vidro sujo da janela para o pátio onde falta a velha figueira. Como morreu a velha figueira? Sinto uma dor imensa por não me lembrar; como se tivesse perdido a oportunidade de lhe dizer algo de muito importante e íntimo; como se tivesse remorsos de não ter vertido uma única lágrima pela sua morte. Até parece que uma música parou repentinamente dentro de mim. Talvez por isso a laranjeira se recuse a dar laranjas, ressentida pela minha ingratidão. Não sabe que as comíamos apenas por amizade, dado que eram um pouco azedas “São muito boas para acompanhar o leitão” desculpava-a o meu avô, que a conhecia desde pequenina… e nós sorriamos de ternura.
Também devo ter sido infeliz aqui, mas não me lembro.
Só me lembro de estarmos à mesa a falar todos ao mesmo tempo e de vir o cheiro bom da urze a arder na lareira. Porque será que punham urze no lume? Jamais o saberei agora. Talvez fosse para tornar mais aromática a minha saudade futura.
Sinto que um poema, ou qualquer coisa parecida, nasceu algures no fundo de mim, ao pensar nisto, mas ainda não lhe conheço as palavras; só quando a música regressar ao meu corpo ele virá à superfície, palavra por palavra. Espero saber colhê-las como flores, ou como frutos, ou como simples pedras a enfeitar a beira da estrada.

Como tudo deveria parecer mais harmonioso quando o Sol era o deus festivo e generoso que dava a luz e a vida. Como tudo deveria ser mais simples quando só se acreditava no que se entendia. Mas desde essa infância dos tempos, a humanidade evoluiu, transcendeu-se e finalmente ficou órfã ou a sós com um criador em que acredita humildemente, mas não entende.
O sino da capela de Aguim chama os fiéis acabrunhados e penitentes para a adoração do seu deus silencioso e invisível e eu olho o Sol belo e apocalíptico por entre o fumo dos incêndios de verão e comovo-me, incrédulo e órfão, até às lágrimas.