14 setembro 2009

A Carta


Não tenho nada para fazer hoje. Não tenho nenhum livro para ler, nenhuma música para ouvir. Apetecia-me escrever uma carta a alguém. Alguém que vivesse do outro lado do mar. Alguém que já se tivesse esquecido de mim há muito, e que ao receber a carta parasse num leve sorriso de surpresa. O envelope com a minha caligrafia e a carta lá dentro.
– De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Nada importante. Uma carta minha que tivesse levado quinze minutos a escrever e quinze dias a chegar. Queria interromper a vida de alguém com uma carta que não fosse importante, que essa pessoa guardasse no bolso para ler mais tarde, quando tivesse tempo, e se esquecesse disso, e deixasse no bolso do casaco durante muito tempo, e mais tarde, num dia em que não tivesse nada para fazer, nem um livro para ler, nem uma música para ouvir, se lembrasse repentinamente que ainda não a tinha lido, e a fosse procurar por todo o lado numa ansiedade de quem busca uma coisa que se tornou valiosa só porque não se sabe do seu paradeiro.
A letra a azul sobre o papel creme, letra de caneta de tinta permanente, de caligrafia esmerada, aqui e ali a esborratar um pouco, e a assinatura no fim. Uma assinatura tentada no ar em jeito de ensaio antes de a desenhar no papel, rápida e agilmente.
Nada de importante. Apenas uma carta de alguém que se conhece mal ou que já se esqueceu quase totalmente. Queria escrever uma carta assim. Uma carta sem uma notícia urgente, sem um pedido desesperado, sem uma declaração de amor, sem a intenção de cumprir sequer uma formalidade.
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Os olhos preguiçosos a verem o corpo do texto sobre o papel, sem lerem ainda. Do lado esquerdo impecavelmente alinhado e do lado direito sem respeitar a margem. Às vezes ultrapassando-a para escrever a palavra toda, apertando as letras, outras vezes, por julgar que não cabia, deixando um espaço excessivo.
Os olhos preguiçosos pousam na assinatura antes de lerem o texto. Um leve sorriso sarcástico.
– Quem será mesmo esse meu primo português que faz uma assinatura tão pretensiosa numa carta informal.
Queria escrever uma carta a alguém. Cumprindo um ritual. Ao fundo na Elísio de Moura o som dos carros no asfalto molhado resgatam-me, não sei de que memórias, a lembrança do mar. A cadência das ondas como um pulsar de desalento irremissível. Uma coisa tristíssima sem motivo nenhum. A minha avó a dar um ai que parecia a alma a rasgar. – Que tristeza é essa 'vó? – Não estou triste meu filho, é o hábito. Os carros a passarem na Elísio de Moura como se a tristeza da minha avó fosse um hábito tão grande que agora enche os momentos de tédio em que me apetece escrever uma carta por não ter nada que fazer.
A carta nas mãos de alguém do outro lado do mar. Uma varanda sobre a vegetação tropical e uma carta que ainda está para ser lida. Uma carta de quem sentiu a solidão da noite e um apelo irresistível para comunicar com alguém. Não uma pessoa íntima que sabe quase tudo de nós. Não uma completa estranha que não quer saber nada de nós. Uma pessoa a quem a carta desperte para uma memória desvanecida de mim, que não se surpreenda com as minhas palavras, mas sim com o meu interesse em dizer alguma coisa.
O senhor Luís da Loja vinha de bicicleta entregar o correio e fazia soar a corneta apertando o punho de borracha à porta dos destinatários. Um toque prolongado como uma lamúria e dois breves e alegres no fim. Naqueles três toques ele resumia o teor de todas as cartas; as notícias dolorosas que perduram mais tempo na memória, e as notícias boas que deixam um breve lampejo de felicidade, como se fosse obrigatória a felicidade, e não tivéssemos que nos sentir gratos por ela. O senhor Luís da Loja conhecia o remetente e o destinatário de todas as cartas, sabia de todos os encontros e desencontros da vida dos correspondentes; era como o médico de família da saudade. – Uma carta do seu filho; quer que lha leia? E os olhos analfabetos a sorrirem. – Sim, p'la alma dos seus, qu'eu no sê uma letra. Que diz ele?
Não queria que recebessem de mim uma carta assim. Não queria despertar sentimentos fortes em ninguém. Queria apenas pousar de leve na vida de alguém, chegar e partir como uma brisa, como uma folha solta trazida pela aragem e que deixa uma breve sombra na leitura de um jornal, que distrai de uma dor por um minuto, que alivia uma mágoa ou quebra um riso. Que despertasse apenas uma breve curiosidade, que levasse apenas a um ténue esforço de memória para alguém se lembrar de mim e me imaginasse a escrever a carta, não como eu a tivesse escrito realmente, mas como a sua imaginação me recriasse a fazê-lo, de modo a que eu passasse a ser apenas um produto da sua fantasia, e assim, me tornasse em algo íntimo. Íntimo, mas sem a partilha física dos corpos, sem a mútua devassa dos afetos.
Já escrevi cartas de todas as maneiras, até sobre o carregador de uma arma, só pela urgência de dar a saber que estava vivo. É muito diferente escrever de casa para alguém que está longe, não sabemos bem onde, e escrever de longe, de onde não sabem de nós. Onde nós também não sabemos bem de nós. A mata misteriosa a separar-nos de tudo o que nos é familiar, e o apelo para comunicar com quem nos tem no pensamento. A vontade de responder a perguntas que não ouvimos, mas que sabemos terem-nos sido formuladas. Perguntas de que nos chega o significado mais profundo, mas não as palavras que o transportam. E o apelo para responder, justamente as palavras, as palavras que faltam, porque o significado é sobejamente conhecido. Depois o prazer de desenhar as palavras no papel. O conforto das palavras escritas, físicas, quase tangíveis, a darem densidade à imaterialidade dos sentimentos.
Mas agora, nesta noite em que o computador me avisa que recebi mais um e-mail ou alguém me chama no Messenger, queria sentar-me na pequena mesa tosca e acanhada de onde via os fogos-fátuos no cemitério de Aguim num fim de tarde de verão, e escrever uma carta para uma pessoa que mal me conhecesse, e que ficasse surpresa por eu ter mandado notícias, não por mim, não por ela, não pelo que dissesse; apenas porque isso implicaria uma certa dedicação, uma certa humanidade numa cadeia de esforços de várias pessoas para que a carta chegasse ao destino.
O cabo de dia a ler em voz alta o nome de um soldado, e um braço alegre a pegar no aerograma. Os olhos sem conseguirem ler devido à ansiedade. As palavras escritas por todo o papel amarelo do aerograma e depois a apertarem para o fim, para caberem mais, e nas margens também, porque as despedidas são sempre difíceis, mesmo quando são feitas de tinta sobre papel. Agora os olhos sem conseguirem ler devido às lágrimas desfocarem tudo. Aquelas palavras sempre tão iguais, sempre tão previsíveis, mas a despertarem sempre a emoção da surpresa.
Outro e-mail a chegar. Um contacto a chamar-me no Messenger. Este falso dom de ubiquidade que temos ao contactar em simultâneo para vários lugares do mundo. Todos em contacto com todos, para todo o lado, a toda a hora, sem aparente intermediação.
O cabo de dia a ler para si o nome do soldado Lourenço. Um soluço a calar a voz. Boas notícias e nenhum braço alegre. Os soldados calados a guardarem luto. O cabo de dia passa para baixo o aerograma que era para o Lourenço e continua a chamar os soldados um a um.
A pior coisa que se pode escrever é uma carta para um soldado já morto. Quando o aerograma chegar devolvido por não ter encontrado o soldado Lourenço haverá alguém como o Sr. Luís da Loja que fará soar uma corneta? Alguém como o médico de família da saudade a dizer: "Uma carta do seu filho"?
O som dos carros no asfalto molhado ao fundo da avenida a resgatarem-me o som do mar do fundo da memória, como algo irremissível, e eu a pegar na velha caneta de tinta permanente e a escrever: Cara prima,…
Quem sabe, talvez daqui a quinze dias do outro lado do mar, alguém como o senhor Luís da Loja, a buzinar a bicicleta:
– Tem uma carta pra você do exterior. De quem é?
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.


28 janeiro 2009

O Mistério da Foto da Capelinha de S. José


O sótão da casa da adega é um amontoado de lixo. E este amontoado de lixo é a arqueologia da minha vida. Objetos mortos; amortalhados de pó. Cadáveres de objetos. Objetos quietos no tempo à espera que os esqueçam de vez, para que possam finalmente dissolver-se na terra mãe de onde vieram.
Avanço furtivamente, com o sentimento de quem profana um túmulo. Afasto as teias de aranha que parecem panos impregnados com a alma do tempo, e que boleiam a forma dos objetos, como um lençol cobrindo um cadáver.
Sopro o pó de uma enchó do meu avô, e ela parece que acorda, ganhando humanidade. Um foicinho da minha avó. Uma podôa do meu pai. Um bastidor da minha mãe. Sem a mortalha de pó, ressuscitam e parece que procuram as mãos dos donos, as mãos que calejaram, as mãos que os moldaram a eles. Não são objetos em série, são objetos feitos pelo uso, que ganharam o jeito do dono; noutras mãos seriam maljeitosos. Eram prolongamentos dos braços, como próteses ortopédicas; partes sobrevivas dos meus antepassados.
Caiu-me à frente uma caixa de papel levantando uma nuvem de pó.
Quando a nuvem de pó se dissipou, um grupo de pessoas olhou-me de frente. Imóveis. À medida que os meus olhos procuram os pormenores da fotografia, parece que se movimentam um pouco.
A sua imobilidade dá-lhes um ar sarcástico, parecendo desafiar-me, e dou por mim a pretender apanhá-los na fraqueza de um movimento. Desvio o olhar para uma mancha do papel e volto a prestar-lhes atenção. Esta disputa demora uns segundos; o suficiente para se tornar uma patetice. Mas não consigo dominar-me. Os meus olhos traem¬ me e voltam sempre àquele jogo, como que atraídos por aquelas figuras que parecem zombar de mim, olhando-me como um friso de espectadores estáticos mas atentos, em frente do palco; suspensos da ação que decorre aqui, onde eu, o ator, devesse dizer a próxima fala, efetuar o próximo movimento.
Há um pormenor da fotografia que acaba por me prender a atenção. A posição carinhosa e protetora do meu avô, segurando-me pelos ombros. O meu avô tinha uma má relação com os seus sentimentos. Não era homem de grandes manifestações de afeto, o que lhe valeu a alcunha de Vinagre. Lembro-me que me embalava cantando canções obscenas; e essas canções são a única manifestação de afeto de que me recordo. Vê-lo assim naquela atitude carinhosa e protetora faz¬ -me subir um novelo de saudade, lentamente até à garganta, vindo não sei de que memórias.
O céu ao fundo, entre as árvores, está reduzido a uma ausência de cor, devido ao monocromatismo esquálido da fotografia.
Envolvendo a capela, algumas oliveiras evitam que a fotografia pareça despida. Os ramos pararam para sempre, alheios à aragem da tarde de verão.
Sim, é de tarde porque as sombras projetam-se para nascente, e é verão porque o meu avô está de camisa de manga arregaçada. Os ramos das oliveiras pararam para toda a eternidade quando o clique da máquina se fez ouvir.
Não é um clique. É o som da cortina, do obturador e do diafragma da máquina em acorde, antes de ser substituído pelo estalido insípido das máquinas digitais. Aquele ruído que fazia com que as pessoas se descontraíssem da pose forçada que mantiveram durante os últimos preparativos do fotógrafo. Mas não se descontraem logo, respiram fundo primeiro, olham umas para as outras e depois é que mudam de posição, como se não fosse permitido ficarem como estavam depois da foto tirada. De seguida as conversas interrompidas continuam pouco a pouco a reformularem-se.
O fotógrafo é amador; um fotógrafo profissional fotografaria o grupo mais de perto, para se conhecerem melhor as pessoas, ou mais de longe para não cortar o pináculo da capela que tem uma estranha forma de flecha com uma cruz em cima.
O fotógrafo é seguramente o meu tio brasileiro, porque só ele reuniria parentes afastados para uma fotografia; para levar como recordação quando voltasse para o Brasil.
O fotógrafo afastou-se um pouco para a direita, muito pouco, só o suficiente para não cair num buraco que está no chão. Atrás do buraco está uma enorme pedra com cerca de meio metro de altura, de forma vagamente paralelepipédica.
Isto não aparece na fotografia; nem nesta, nem em nenhuma outra que eu tenha visto, decerto, devido ao baixo valor estético que os fotógrafos veem naquele conjunto. E por acharem uma falta de bom senso manter-se assim uma pedra daquele tamanho com um buraco à frente, durante todo o verão; desde o dia de S. José, em março, até ao dia da Nossa Senhora das Febres, em setembro, mesmo em frente da capelinha.
Através dos séculos um culto celta veio desaguar assim na minha infância. Um aras onde um druida pontificava a adoração à deusa Eostre, ou um menir, fálico e imponente, celebrando a fecundação da terra, ou uma antes alinhada com o ponto exato em que o equinócio da primavera daria nascimento ao Novo Ano Solar, mal a linha do horizonte partisse a meio o disco do sol.
Um ritual desgastado pela viagem penosa através dos tempos, resistindo a todos os invasores, a todos os novos cultos, à ciência, à técnica… a tudo, até restar esta reminiscência resgatada da vizinha povoação abandonada de Vila Franca, acompanhando a imagem de S. José, resgatada também, quando morreu o último habitante que teimava em acender todos os dias o lume na lareira da sua casa, na povoação assombrada já pelos insuportáveis silêncios dos ausentes.
E, um dia, cumprindo a mais brutal lei da Natureza, essa reminiscência que a tanto resistiu, acabou finalmente por sucumbir.
Sucumbiu à arrogância dos ignorantes e à prepotência dos espíritos pragmáticos, de quem alia as tradições populares à falta de desenvolvimento.
Enquanto estava assim desenterrada, já só servia para marcar a época, de equinócio a equinócio, em que os mais humildes de entre os humildes podiam descansar os seus corpos da fadiga; dos rigores da labuta nos campos e da crueldade do estio, nalguma sombra que a Natureza, mais próxima deles, lhes oferecesse com compaixão, impondo-se à distante e estúpida inclemência dos homens, a mesma inclemência estúpida que lhe deu fim, reduzindo finalmente esse falo monolítico à total impotência, estilhaçado em brita, e enterrado definitiva e ingloriamente, debaixo de uma camada de alcatrão.
O poder local ganhou mais umas eleições e a terra ficou viúva.
Embora fora de cena, a pedra da sesta aguarda ali, um pouco atrás do fotógrafo, a festa da Nossa Senhora das Febres, em setembro, para ser enterrada. A festa que mais se aproxima do novo equinócio, depois de o Sol ter cumprido a sua incansável missão de mostrar aos homens as etapas do tempo.
Então terminará mais uma etapa para os humildes, a do descanso depois do almoço; ou melhor, depois do jantar, que assim se chamava a segunda refeição do dia em Aguim, pois a bucha é parca mas é comida com orgulho, e as palavras, se não alteram a essência das coisas, podem até fazer-nos crer que chega para empanturrar o estômago, aquilo que na realidade não enche a cova de um dente.
O almoço é de manhã, com o resto da ceia da véspera, e por isso não é, nem lhe chamam pequeno, que a enxada é pesada e não se mexe sozinha.
O enterramento da pedra é um ato pouco festivo. A festa é em Anadia, aqui parece mais um funeral; ou não se tratasse de oficializar a perda de um direito laboral, o descanso da sesta.
No dia de S. José, a 19 de março, é uma festa dentro de outra festa. Os jazes, como começam a ser chamados os pequenos grupos musicais em que os metais veem substituindo os acordeões e os instrumentos de corda, ficam a tocar sozinhos ao despique, nos coretos do Largo do Sobreirinho, e as pessoas veem juntar-se em torno da entrada da capelinha para assistir a uma outra competição: uma parelha de cavadores tenta superar em rapidez os que no ano anterior desenterraram a pedra da sesta.
E ela ali está ainda, fora do enquadramento da fotografia, ela e o seu buraco, aguardando o equinócio do outono para fecundar a terra que há de germinar no próximo equinócio da primavera.
A mancha do Arvoredo apenas salpica a margem esquerda da fotografia. O Arvoredo não é um arvoredo, é o Arvoredo. O substantivo comum ganhou dignidade de topónimo ou até de nome próprio. Se procurar entre as páginas dos meus sonhos de infância, a silhueta daquelas árvores são o papel de cenário de todas as minhas aventuras imaginadas.
Neste dia não era domingo, nem feriado, apesar das roupas domingueiras. Era dia de festa, porque o meu avô está de gravata. E como sempre, com a cabeça inclinada para o lado. Progressivamente passou a incliná-la também um pouco para trás, o que lhe dava, não sei porquê, um ar importante. Aparece assim, em todas as fotografias que lhe conheço, com aquele torcicolo patriarcal.
As crianças, no primeiro plano da fotografia, têm blusas brancas, por ser um dia especial. Um dia de festa em pleno verão. Seguramente era dia da N.ª Sr.ª do Ó.
As crianças não olham para a máquina para ficarem na fotografia. A fotografia para elas ainda era uma arte desconhecida, por isso, não dão qualquer importância ao fotógrafo, não olham para a máquina como esperaríamos de quaisquer crianças; estão mais interessadas naquele grupo de pessoas que ficaram quietas e caladas de repente, e viradas todas para o mesmo lado.
Alguma coisa, no entanto, chama subitamente a atenção de uma das jovens que estão sentadas no primeiro degrau. Deve ser suficientemente interessante, para uma delas chamar a atenção da outra, que no momento crucial da fotografia esquece a pose e olha para trás.
Quisera ser eu que tivesse passado na estrada, e quisera ter despertado, eu, a atenção daquelas jovens. Um olhar apenas, através dos tempos. Eu da idade delas, a caminhar despreocupado, com um fato de festa também, e elas a desviarem o olhar, do fotógrafo para mim, a estragarem a pose porque eu passei na estrada, a cochicharem um segredinho, a sorrirem uma cumplicidade, a incendiarem uma provocação. Tudo em menos de um pestanejar. Uma sinfonia inteira numa única nota.
O som dos foguetes distrai-me o suficiente para que avance demais e não consiga corresponder com naturalidade àquele olhar. Continuo o meu caminho em direção à banda de música que em breve toma conta da rua. Dirige-se para casa de um dos mordomos do ano que vem que os aguarda com vinho e chanfana e vai receber um foguete que guardará como testemunho.
O grupo de pessoas a posar para a fotografia abandonou a pose e aproxima-se para ver melhor a banda.
A minha avó veste roupas muito claras, o que assegura que ainda vivem todos quantos ama. A minha mãe... a minha mãe é muito jovem…
É jovem demais…
É jovem demais, para ser eu quem o meu avô segura pelos ombros...
A banda e toda aquela gente passam por mim, como a água de um rio, que avança contornando, indiferente, os obstáculos. Passam por mim, as pessoas e o tempo, que eu não pertenço a este tempo, ainda não nasci; sou um fantasma de um tempo futuro que olha especado para o passado congelado numa fotografia.
De súbito as formas ganham opacidade. Deixam de ser representações de pessoas e árvores, e regressam à sua condição primária de manchas de tinta sobre o papel; e eu sinto o pânico de Narciso traído pelo Tempo, ao descobrir, não a minha imagem envelhecida sobre o lago, mas a imagem de um estranho no meu lugar; que nunca conheci, que jamais conhecerei; que me rouba o carinho póstumo do meu avô. Uma história a que não pertenço. Um lugar e um tempo irremediavelmente estranhos para mim.
Reponho a foto na caixa de papel como quem fecha a tampa de um caixão, para impedir que um cadáver me assombre.
Só a luz do Sol me restitui a confiança, no terraço da casa da adega. Paro um pouco a olhar o casario e a Capelinha de S. José ao fundo.
Ali, um dia, alguém tirou aquela foto à minha família antes de eu ter nascido, antes de eu ter os privilégios de filho único. Um momento no tempo em que tudo existia do mesmo modo, mas sem mim, e em que tudo fazia sentido na mesma. Sinto-me um mero acidente na inexorável consumição do tempo.
Um leve percalço, e tudo teria levado um rumo diferente, um rumo que não me incluiria neste mundo.
E a realidade constrói-se-me sem mistério nenhum, sem transcendência, sem poesia sequer. Eu, ou qualquer outro no meu lugar, não faz a menor diferença.
Parto dali como um proscrito. Fujo em busca de alguém que me conheça. Alguém que me assegure a existência com um átimo da sua atenção; porque só o afeto que recebemos nos garante que não somos apenas um acidente irrelevante; um rosto desconhecido numa foto antiga.