19 janeiro 2019

A cálida preguiça do vento suão


Hoje estou de cama; se puder, o dia todo. Lá fora o suão a inquietar as oliveiras da capelinha de São José. A levantar as folhas das árvores e ao mesmo tempo a levantar a erva do chão. A levantar as saias das mulheres e ao mesmo tempo a levantar o ânimo dos homens. Só eu quieto. Eu a ver se o tempo não anda. O outono veio amansar o verão quando os dias já caiam de cansaço. Pela manhã os primeiros frios. O ano chegou à terceira idade, mas enquanto o inverno não chega o sol faz o que pode para aquecer o mundo. Uma réstia entra pela janela e aumenta a minha preguiça. Se me levantar vejo o mundo como ele é, assim as coisas são como eu imaginar.

 O desassossego do vento morno a inquietar mais do que as oliveiras; a inquietar tudo. Um ramo da figueira a tentar agarrar-se à janela do meu quarto, e a janela da marquise que aguenta, aguenta gemendo, e depois fica a pedir socorro batendo sem parança. Mesmo as vozes vêm e depois abalam sem terminarem o que dizem, levadas pelo ar tresloucado. As vozes a balouçar ao vento. Só o malho de ferro na bigorna do Ti Zé Sécio não se deixa calar. O Ti Zé Sécio ganha a vida à martelada e não vai ser o vento suão a calar o cantarolar da sua bigorna. Mas hoje é domingo e não tenho o som da bigorna do Ti Zé Sécio para me despertar.
Hoje há missa e tenho de vestir fato. Por isso vou deixar a minha mãe chamar quatro vezes. A minha mãe chama, chama, e à terceira vez consegue acordar-me, se a deixar chamar quatro vezes pode ser que desista.
Se não fosse a missa eu até poderia gostar dos domingos. Eu cá na missa sempre com atenção, porque há uma parte em que toda a gente se levanta e a Mariazinha balouça o vestido às flores. Só que às vezes a irmã põe as pernas à frente e eu não consigo ver. A Irmã já não é nova, vai pra mais de vinte anos, mas deve ter sido gira quando tinha a minha idade.
O problema com a missa é que eu não sei rezar. À segunda frase já estou a pensar noutra coisa, quase sempre no vestido às flores da Mariazinha. Um dia, se treinar muito, vou saber rezar como a minha avó, que não escolhe hora para rezar e nunca perde o fio à meada. Avé Maria Está quedo Nelito Cheia de graça Olha que emborcas ao caldo Senhor é convosco Se adregas a sujar o fato a tua mãe dá-te uma trochada. Mas se calhar uma reza assim não conta. Sei lá, talvez só conte a intenção.
A seguir à missa as mulheres regressam a casa para fazer o comer e os homens à taberna do Sr. Boanerges para uma pinguita. O mata-bicho antes da missa e a sossega depois da missa.
Mesmo sem missa acho que não gostaria dos domingos. Aguim aos domingos finge que é uma cidade. As pessoas parecem estar a fazer de conta como nos teatros. Parecem não ter pressa. Abrandam o passo como se andassem a passear. Os animais ficam nos currais, a não ser os cães que estranham que os humanos não cheirem mal como no resto da semana. Porém, os gatos não, os gatos entretêm-se nos telhados como nos outros dias. Durante a semana volta o pé descalço, a roupa suja, a lama na cara feita de pó e suor.
Em Aguim as pessoas estão sempre a fazer coisas. Apressadas de manhã para o campo, derreadas à tardinha para casa. Um mundo cheio de agitação que faz o meu mundo interessante, e que me dá vontade de ficar parado a vê-las. Quando não se faz nada até se gosta de ver as pessoas a trabalhar, mas acho que quando for grande não quero trabalhar. Toda a gente trabalha na minha família menos o meu avô. Parece que é por ser reformado. Senta-se muito tempo na espreguiçadeira e escreve coisas num caderno. Quando crescer também vou querer ser reformado.
No andar de baixo a casa já desembaraçada do sono. As limpezas de domingo num desassossego de vassouras a levantar pó, de escovas a incomodar o descanso dos soalhos e de móveis ruidosos sem parança que tentam espantar-me o sono.
A minha mãe chama, eu conto: uma vez. A ideia do banho matinal arrepia-me. A ideia do latim do padre São Marcos arrepia-me. A ideia do vestido da Mariazinha arrepia-me ainda mais, mas não o suficiente para me tirar a preguiça. Estou indeciso entre dois pecados, luxúria e preguiça, mas vence a preguiça. Se a preguiça serve para vencer um pecado devia contar como virtude, por isso, fecho os olhos com mais força a ver se volto a adormecer.
De olhos fechados o bulício no andar de baixo até me faz um pouco mais de sono. É como o barulho da chuva; pensar em quem anda à chuva aumenta o conforto da cama, e a canseira de quem tem que esfregar e lavar a casa toda aumenta o prazer da minha preguiça. O suão ajuda. A minha avó, que parece entender o mundo melhor que as outras pessoas, diz sempre “vermelho para a serra, chuva na terra; vermelho para o mar, suão a zurrar” e por isso eu já sabia que este vento preguiçoso acabaria por chegar.
A minha mãe chama. Duas, penso eu. Puxo as mantas e só fico com o nariz de fora.
O cheiro a café enche-me as narinas, e reparo que o estômago tem estado a fazer ruídos estranhos. Imagino o café da minha avó que tem um som espesso quando ela o mexe na cafeteira negra sobre as brasas. “Agora ficas a assantar” e passado algum tempo “a modes que já estás limpo”. A minha avó é a única pessoa que eu conheço que sabe falar para uma cafeteira. Depois despeja o café para uma malga grande. E o som espesso do café… “Agora, um bocadinho de broa esfarelada e açúcar amarelo.” “Está aquase.” Diz ela, desta vez para a malga. Neste momento, chega o cheiro da broa torrada à única parte que tenho fora das mantas e fico a aguardar o cheiro da manteiga de vaca derretida, esticando essa parte do corpo um bocadinho mais para fora.
Estranho que a minha mãe não me tenha chamado já pela terceira vez.
Os passos da minha avó, e depois as escadas a rangerem. O cheiro do café, da broa torrada e da manteiga derretida aumentando. Os passos dela na sala e de repente uma explosão de aromas. Atrás do nariz, todo o meu corpo a saltar da cama. A malga fumegante, a broa esfarelada ainda não totalmente submersa, as fatias ao lado a oferecerem-se à minha gula. Mais uma vez um pecado anula outro, e assim se transforma em virtude. Acho que cometendo todos os pecados da lista, pela ordem da menor para a maior tentação, acabaria por alcançar a santidade. Antecipo o sabor delicioso das migalhas da broa misturadas com o açúcar no fundo da malga e como devagar para o prazer não acabar depressa de mais.
O meu mundo, comigo sentado na borda da cama é um pouco diferente de quando estou deitado, mas também pode ser interessante.
Lá fora apenas o som fugidio das coisas, que o vento traz e leva. Eu já de pé preparado para o banho. Eu já acordado, rendido aos expedientes do amor da minha avó. Preparado para a missa, preparado para o latim do padre São Marcos. Feliz por ir ver a Mariazinha a baloiçar o vestido às flores.
E o cálido vento suão a inquietar as oliveiras da capelinha de São José.