Hoje estou
de cama; se puder, o dia todo. Lá fora o suão a inquietar as oliveiras da
capelinha de São José. A levantar as folhas das árvores e ao mesmo tempo a levantar
a erva do chão. A levantar as saias das mulheres e ao mesmo tempo a levantar o
ânimo dos homens. Só eu quieto. Eu a ver se o tempo não anda. O outono veio
amansar o verão quando os dias já caiam de cansaço. Pela manhã os primeiros
frios. O ano chegou à terceira idade, mas enquanto o inverno não chega o sol
faz o que pode para aquecer o mundo. Uma réstia entra pela janela e aumenta a
minha preguiça. Se me levantar vejo o mundo como ele é, assim as coisas são
como eu imaginar.
Hoje há
missa e tenho de vestir fato. Por isso vou deixar a minha mãe chamar quatro
vezes. A minha mãe chama, chama, e à terceira vez consegue acordar-me, se a
deixar chamar quatro vezes pode ser que desista.
Se não fosse
a missa eu até poderia gostar dos domingos. Eu cá na missa sempre com atenção,
porque há uma parte em que toda a gente se levanta e a Mariazinha balouça o vestido
às flores. Só que às vezes a irmã põe as pernas à frente e eu não consigo ver.
A Irmã já não é nova, vai pra mais de vinte anos, mas deve ter sido gira quando
tinha a minha idade.
O problema
com a missa é que eu não sei rezar. À segunda frase já estou a pensar noutra
coisa, quase sempre no vestido às flores da Mariazinha. Um dia, se treinar
muito, vou saber rezar como a minha avó, que não escolhe hora para rezar e
nunca perde o fio à meada. Avé Maria Está quedo Nelito Cheia de graça Olha que emborcas
ao caldo Senhor é convosco Se adregas a sujar o fato a
tua mãe dá-te uma trochada. Mas se calhar uma reza assim não conta. Sei lá,
talvez só conte a intenção.
A seguir à
missa as mulheres regressam a casa para fazer o comer e os homens à taberna do
Sr. Boanerges para uma pinguita. O mata-bicho antes da missa e a sossega depois
da missa.
Mesmo sem
missa acho que não gostaria dos domingos. Aguim aos domingos finge que é uma
cidade. As pessoas parecem estar a fazer de conta como nos teatros. Parecem não
ter pressa. Abrandam o passo como se andassem a passear. Os animais ficam nos
currais, a não ser os cães que estranham que os humanos não cheirem mal como no
resto da semana. Porém, os gatos não, os gatos entretêm-se nos telhados como nos
outros dias. Durante a semana volta o pé descalço, a roupa suja, a lama na cara
feita de pó e suor.
Em Aguim as
pessoas estão sempre a fazer coisas. Apressadas de manhã para o campo,
derreadas à tardinha para casa. Um mundo cheio de agitação que faz o meu mundo
interessante, e que me dá vontade de ficar parado a vê-las. Quando não se faz
nada até se gosta de ver as pessoas a trabalhar, mas acho que quando for grande
não quero trabalhar. Toda a gente trabalha na minha família menos o meu avô.
Parece que é por ser reformado. Senta-se muito tempo na espreguiçadeira e
escreve coisas num caderno. Quando crescer também vou querer ser reformado.
No andar de
baixo a casa já desembaraçada do sono. As limpezas de domingo num desassossego
de vassouras a levantar pó, de escovas a incomodar o descanso dos soalhos e de móveis
ruidosos sem parança que tentam espantar-me o sono.
A minha mãe
chama, eu conto: uma vez. A ideia do banho matinal arrepia-me. A ideia do latim
do padre São Marcos arrepia-me. A ideia do vestido da Mariazinha arrepia-me
ainda mais, mas não o suficiente para me tirar a preguiça. Estou indeciso entre
dois pecados, luxúria e preguiça, mas vence a preguiça. Se a preguiça serve
para vencer um pecado devia contar como virtude, por isso, fecho os olhos com
mais força a ver se volto a adormecer.
De olhos
fechados o bulício no andar de baixo até me faz um pouco mais de sono. É como o
barulho da chuva; pensar em quem anda à chuva aumenta o conforto da cama, e a
canseira de quem tem que esfregar e lavar a casa toda aumenta o prazer da minha
preguiça. O suão ajuda. A minha avó, que parece entender o mundo melhor que as
outras pessoas, diz sempre “vermelho para a serra, chuva na terra; vermelho
para o mar, suão a zurrar” e por isso eu já sabia que este vento preguiçoso
acabaria por chegar.
A minha mãe
chama. Duas, penso eu. Puxo as mantas e só fico com o nariz de fora.
O cheiro a
café enche-me as narinas, e reparo que o estômago tem estado a fazer ruídos
estranhos. Imagino o café da minha avó que tem um som espesso quando ela o mexe
na cafeteira negra sobre as brasas. “Agora ficas a assantar” e passado algum
tempo “a modes que já estás limpo”. A minha avó é a única pessoa que eu conheço
que sabe falar para uma cafeteira. Depois despeja o café para uma malga grande.
E o som espesso do café… “Agora, um bocadinho de broa esfarelada e açúcar amarelo.”
“Está aquase.” Diz ela, desta vez para a malga. Neste momento, chega o cheiro
da broa torrada à única parte que tenho fora das mantas e fico a aguardar o
cheiro da manteiga de vaca derretida, esticando essa parte do corpo um bocadinho
mais para fora.
Estranho que
a minha mãe não me tenha chamado já pela terceira vez.
Os passos da
minha avó, e depois as escadas a rangerem. O cheiro do café, da broa torrada e
da manteiga derretida aumentando. Os passos dela na sala e de repente uma
explosão de aromas. Atrás do nariz, todo o meu corpo a saltar da cama. A malga
fumegante, a broa esfarelada ainda não totalmente submersa, as fatias ao lado a
oferecerem-se à minha gula. Mais uma vez um pecado anula outro, e assim se
transforma em virtude. Acho que cometendo todos os pecados da lista, pela ordem
da menor para a maior tentação, acabaria por alcançar a santidade. Antecipo o
sabor delicioso das migalhas da broa misturadas com o açúcar no fundo da malga
e como devagar para o prazer não acabar depressa de mais.
O meu mundo,
comigo sentado na borda da cama é um pouco diferente de quando estou deitado,
mas também pode ser interessante.
Lá fora
apenas o som fugidio das coisas, que o vento traz e leva. Eu já de pé preparado
para o banho. Eu já acordado, rendido aos expedientes do amor da minha avó. Preparado
para a missa, preparado para o latim do padre São Marcos. Feliz por ir ver a Mariazinha
a baloiçar o vestido às flores.
E o cálido
vento suão a inquietar as oliveiras da capelinha de São José.