28 março 2019

Memórias desconexas




Extraído de “Prope Poetica”

De tanto olhar o poente envelhecem os meus olhos.
O poente é o lago de Narciso. Não há beleza nenhuma no lago. O lago não envelhece adorando a sua imagem nos olhos de Narciso, porque toda a beleza do mundo é uma ilusão humana.
Os meus olhos, aqui, envelhecendo porque adoram a beleza do poente que é deles.
Tanta ilusão de beleza por falta de ti.

Nada me surpreende já. Vejo com a mesma indiferença a coragem e a cobardia. Mas todo eu me encho de ciúme com o desperdício da vida dos jovens. Não contar os anos sem projetos nenhuns, esbanjar a vida por vivê-la sem moderação. Ser feliz por não saber o que é a felicidade.

É preciso ter estado na guerra para saber que o amor é inevitável.
Mesmo quando o sol se põe sem a perspectiva da madrugada. Mesmo quando se adormece abraçado a uma arma. Mesmo quando se acorda na mesma guerra em que se adormeceu.
Porém nunca se é feliz quando tudo está no seu lugar e nós andamos perdidos.

Penso em ti no recreio da escola. Nesse tempo havia um muro entre nós. E sobre o muro uma ameaça de aparteid.
Às vezes vejo um gato sentado no muro rindo de nós. Às vezes ouço um cão ao longe chorando por nós. Às vezes  pressinto uma coruja lúgubre a meio da noite, crocitando remorsos por nós. Só pode ser por não termos uma história para contar.

Se tu soubesses a vontade que eu tenho de estar contigo, de me sentar a ouvir-te falar até adormecer. O lume a crepitar, a música do vento na chaminé e a libido serena como uma seara depois da ventania.
Há um comboio arfando pela serra acima carregado de memórias; um dia espero por ele numa estação para ver se desembarcas.

Passo a passo se escreve o diário de um soldado; fica desenhada na sujidade do chão a marca do cansaço. Tiro a tiro se escreve o diário de um soldado;  fica desenhada na sujidade da alma a marca da morte. É de cansaço e de morte o diário de um soldado e é escrito na sujidade.

Havia rosas vermelhas num jardim de Mueda. Vermelhas. Ao lado, havia lama, pedras e lixo; mas havia rosas vermelhas.  Os soldados caminhavam pesados, deixando marcas de botas no chão como se levassem a morte às costas, as Berliets carregadas levavam soldados e traziam soldados numa traficância de morte. Os helicópteros que passavam por cima de tudo para levar mais soldados , traziam sempre menos de volta. Em Mueda  a morte estava sempre subentendida.
Mas havia um jardim com rosas vermelhas.

No meu sonho há uma ave que toca de leve com uma asa no lençol negro das águas mansas do lago. Há uma distância enorme para percorrer até casa. Tão tarde meu amor, tão tarde. Um arqueiro aponta flechas à lua e eu de mãos vazias sem ao menos um ramo de cravos para lutar contra a indiferença da humanidade.

Pelo Natal íamos ao musgo aos pinhais. Em cima da mesa pequena da sala uns bonecos de barro encaminhavam-se para uma gruta de cortiça, e eu acreditava no menino Jesus. O meu primo na janela em frente: Ó menino Jasus, já comi os rabuçados todos!
Um arranco de pinheiro veio destronar o presépio não sei em que altura da minha infância , depois um velho com cara de bêbado veio para o lugar do menino Jesus. Agora que o Natal é um longo anúncio comercial, faz-me falta ir ao musgo para o presépio. Vamos vó?

Na praia da Costa Nova havia uma escola no meio da areia. À ida para a praia passávamos pela escola, à vinda da praia passávamos pela escola. Nesse perfeito lugar para aprender, aprendemo-nos um ao outro numa tarde escaldante de verão. Vieram as horas, os dias e os anos, e desaprendemos tudo.

O medo conheci-o melhor, não na guerra mas à beira da tua cama. Poucos experimentaram o conhecimento da finitude de arma na mão, mas nada me devorou as entranhas como a tua dor, caída assim nesse campo de batalha. E eu a desaparecer por dentro, até ficar prenhe de medo perante o abismo eminente da tua ausência.

Ah a felicidade num copo de vinho… na adega da casa alta atrás da capelinha de São José roubávamos horas à noite para aumentar o dia. De hora a hora íamos mijar contra o muro do pátio para arranjar espaço para mais um copo.
Os dois zés chorando no ombro um do outro comovidos com o absurdo da vida. E a gente a rir, como se fosse fácil entender o mundo com um copo a mais.
Um dia fizemos um banquete com as batatas cozidas que o Paulo encontrou numa panela de ferro.
Coitada da minha mãe, desgostosa com a maldade do mundo – Ele há gente para tudo meu filho, esta noite inté roubaram a lavaige do porco.

Amei-te há muito, hoje na minha memória. Nessa altura, seguramente, não te amei. Mas hoje lembro-me de ti como tendo-te amado. Já não sou a criança atónita perante a estranheza do íman dos teus olhos ou da tontura com o som da tua voz ou do desequilíbrio de todo o meu ser à tua passagem. Hoje sou um homem que dá nome às coisas e tu uma mulher cansada de o ouvir.

O largo da minha aldeia era o centro do mundo. E como eram grandes as árvores de Natal. O novelo do tempo foi-se desenrolando e agora as árvores de Natal são pequenas e o largo da minha aldeia fica num cantinho do mundo. Ou dito de outra forma, eu cresci demais.

Sentada à beira da estrada como se fora um rio, que se fosse um rio sonhava, aguarda o convite dos homens que passam. Melissa não sorri profissionalmente para os clientes, aprendeu a levar a sério as humilhações da vida.

Uma árvore frondosa a tempestade arrancou. Inesperadamente o vazio de uma clareira substituiu a imponência da árvore.
Haja esperança, porque nas clareiras nascem frequentemente flores.