Extraído de “Prope Poetica”
De tanto
olhar o poente envelhecem os meus olhos.
O poente é o lago de Narciso. Não há
beleza nenhuma no lago. O lago não envelhece adorando a sua imagem nos olhos de
Narciso, porque toda a beleza do mundo é uma ilusão humana.
Os meus olhos, aqui, envelhecendo porque
adoram a beleza do poente que é deles.
Tanta ilusão de beleza por falta de
ti.
Nada me surpreende
já. Vejo com a mesma indiferença a coragem e a cobardia. Mas todo eu me encho
de ciúme com o desperdício da vida dos jovens. Não contar os anos sem projetos
nenhuns, esbanjar a vida por vivê-la sem moderação. Ser feliz por não saber o
que é a felicidade.
É preciso
ter estado na guerra para saber que o amor é inevitável.
Mesmo quando o sol se põe sem a perspectiva
da madrugada. Mesmo quando se adormece abraçado a uma arma. Mesmo quando se
acorda na mesma guerra em que se adormeceu.
Porém nunca se é feliz quando tudo
está no seu lugar e nós andamos perdidos.
Penso em ti
no recreio da escola. Nesse tempo havia um muro entre nós. E sobre o muro uma
ameaça de aparteid.
Às vezes vejo um gato sentado no
muro rindo de nós. Às vezes ouço um cão ao longe chorando por nós. Às vezes pressinto uma coruja lúgubre a meio da noite, crocitando
remorsos por nós. Só pode ser por não termos uma história para contar.
Se tu soubesses
a vontade que eu tenho de estar contigo, de me sentar a ouvir-te falar até
adormecer. O lume a crepitar, a música do vento na chaminé e a libido serena
como uma seara depois da ventania.
Há um comboio arfando pela serra
acima carregado de memórias; um dia espero por ele numa estação para ver se desembarcas.
Passo a
passo se escreve o diário de um soldado; fica desenhada na sujidade do chão a
marca do cansaço. Tiro a tiro se escreve o diário de um soldado; fica desenhada na sujidade da alma a marca da
morte. É de cansaço e de morte o diário de um soldado e é escrito na sujidade.
Havia rosas
vermelhas num jardim de Mueda. Vermelhas. Ao lado, havia lama, pedras e lixo;
mas havia rosas vermelhas. Os soldados caminhavam
pesados, deixando marcas de botas no chão como se levassem a morte às costas, as
Berliets carregadas levavam soldados e traziam soldados numa traficância de
morte. Os helicópteros que passavam por cima de tudo para levar mais soldados ,
traziam sempre menos de volta. Em Mueda a
morte estava sempre subentendida.
Mas havia um jardim com rosas vermelhas.
No meu sonho
há uma ave que toca de leve com uma asa no lençol negro das águas mansas do
lago. Há uma distância enorme para percorrer até casa. Tão tarde meu amor, tão
tarde. Um arqueiro aponta flechas à lua e eu de mãos vazias sem ao menos um
ramo de cravos para lutar contra a indiferença da humanidade.
Pelo Natal íamos
ao musgo aos pinhais. Em cima da mesa pequena da sala uns bonecos de barro encaminhavam-se
para uma gruta de cortiça, e eu acreditava no menino Jesus. O meu primo na
janela em frente: Ó menino Jasus, já comi os rabuçados todos!
Um arranco de pinheiro veio
destronar o presépio não sei em que altura da minha infância , depois um velho
com cara de bêbado veio para o lugar do menino Jesus. Agora que o Natal é um longo
anúncio comercial, faz-me falta ir ao musgo para o presépio. Vamos vó?
Na praia da
Costa Nova havia uma escola no meio da areia. À ida para a praia passávamos
pela escola, à vinda da praia passávamos pela escola. Nesse perfeito lugar para
aprender, aprendemo-nos um ao outro numa tarde escaldante de verão. Vieram as
horas, os dias e os anos, e desaprendemos tudo.
O medo
conheci-o melhor, não na guerra mas à beira da tua cama. Poucos experimentaram o
conhecimento da finitude de arma na mão, mas nada me devorou as entranhas como
a tua dor, caída assim nesse campo de batalha. E eu a desaparecer por dentro, até
ficar prenhe de medo perante o abismo eminente da tua ausência.
Ah a felicidade
num copo de vinho… na adega da casa alta atrás da capelinha de São José roubávamos
horas à noite para aumentar o dia. De hora a hora íamos mijar contra o muro do
pátio para arranjar espaço para mais um copo.
Os dois zés chorando no ombro um do
outro comovidos com o absurdo da vida. E a gente a rir, como se fosse fácil entender
o mundo com um copo a mais.
Um dia fizemos um banquete com as
batatas cozidas que o Paulo encontrou numa panela de ferro.
Coitada da minha mãe, desgostosa com
a maldade do mundo – Ele há gente para tudo meu filho, esta noite inté roubaram
a lavaige do porco.
Amei-te há
muito, hoje na minha memória. Nessa altura, seguramente, não te amei. Mas hoje lembro-me
de ti como tendo-te amado. Já não sou a criança atónita perante a estranheza do
íman dos teus olhos ou da tontura com o som da tua voz ou do desequilíbrio de
todo o meu ser à tua passagem. Hoje sou um homem que dá nome às coisas e tu uma
mulher cansada de o ouvir.
O largo da
minha aldeia era o centro do mundo. E como eram grandes as árvores de Natal. O
novelo do tempo foi-se desenrolando e agora as árvores de Natal são pequenas e
o largo da minha aldeia fica num cantinho do mundo. Ou dito de outra forma, eu
cresci demais.
Sentada à
beira da estrada como se fora um rio, que se fosse um rio sonhava, aguarda o
convite dos homens que passam. Melissa não sorri profissionalmente para os clientes,
aprendeu a levar a sério as humilhações da vida.
Uma árvore frondosa
a tempestade arrancou. Inesperadamente o vazio de uma clareira substituiu a imponência
da árvore.
Haja esperança, porque nas clareiras
nascem frequentemente flores.
Um comentário:
Tanta ilusão de beleza por falta de ti.....
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