O prazer dos pés nus na quentura do pó, a estrada como algo pousado com preguiça sobre os vinhedos só para a gente passar, o ar sem movimento a dar a impressão que no verão vivíamos no vácuo e as distâncias enormes. O som das enxadas ferindo as côdeas da terra e um cheiro de tantas coisas no ar ao mesmo tempo, que não dava para dizer a que cheirava. Uma coisa é certa, o tempo não andava, vivíamos num presente que apenas dilatava, e nós nele como fazendo parte de uma fotografia animada.
Quando comecei a ir à escola, às vezes desviava-me pela rua da loja para sentir o cheiro do salitre do bacalhau, da moagem do café e do sarro do vinho a saírem da loja da senhora Idalina. À porta, do lado esquerdo, uma saca grande com milho. Em minha casa só no arcão, com uma tampa demasiado pesada, e aqui mesmo à mão. Olho para um lado e para o outro e entro sorrateiro na loja. Vejo a saca do milho indefesa. Quando ninguém reparava em mim enterrava devagar uma mão no milho. Meio minuto de prazer bastava. Depois retirava a mão devagar. E uma certa vergonha fazia-me fugir do local do crime. Às vezes, mexia mesmo os dedos da mão, e o prazer multiplicava-se por cinco, nas entranhas granuladas do milho. A partir do dia em que fui descoberto a minha vida mudou, porque aquele prazer aumentou desmedidamente, por ter ganho o estatuto de pecado.
Foi por essa altura que me convenceram que para além dos meus pais havia ainda um poder maior e mais intransigente. O pior é que parece que está em todo o lado e vê tudo o que fazemos. Umas vezes afligia-me com isso e a vida tornava-se tão chata como a sala de espera do doutor Santos, outras vezes parecia que podia dar-se o caso de essa autoridade estar distraída e não me ver cometer o terrível pecado de enfiar a mão na saca do milho.
Deve ser isso também que pensa o padre quando está com a afilhada na sacristia, e o Tó, que ajuda à missa, se põe muito quieto encostado à porta. O padre às vezes apanha deus distraído. E a minha avó para a minha mãe: - É a amázia. Eu um dia para o meu avô, assim à traição: - O que é uma mázia? E ele com um sorriso de viés como quando olhava a moça serrana de costas, a fazer as camas de lavado: - Quem é que tem uma amázia? E eu: ¬- ¬É o padre Amâncio. O meu avô riu durante muito tempo até ficar sem fôlego, e depois como se me estivesse a resolver um problema da escola: - Sabes, o padre é um homem, e às vezes precisa de uma mulher. Estranho, pensei eu, e depois em voz alta: - Precisa de uma mulher para quê?
O meu avô riu até se engasgar e tossiu durante muito tempo, depois quando pareceu ficar melhor: - Para que a mulher lhe sirva. Quando a mulher quer, serve sempre ao homem.
Não entendi. Mas uma suspeita de que as palavras não servem para nos entendermos nasceu aqui. As palavras que servem para explicar, servem também para confundir.
Mas tu eras simples demais para confundir. Era quase sem palavras que nos explicávamos. Chegavas e eu deixava de ser filho-único; partias e eu voltava ao meu mundo de uma só pessoa. Porém nunca te amei, talvez porque me habituei a ti cedo demais e o amor precise da diferença e do mistério e de alguma transgressão.
E as palavras do meu avô, que ainda não entendia, faziam-me imaginar-te como um casaco que tivesse que usar primeiro, para ver se servia. Uma pessoa, assim como um sapato, mas que se ajustasse ao pé, fosse qual fosse a nossa medida. Como o milho na saca da loja da senhora Idalina se ajustaria a qualquer mão. O prazer que senti ao lembrar-me da minha mão a penetrar os interstícios do milho deu lugar a uma profunda repulsa ao associá-lo a ti. Seguramente, não eras à minha medida; seguramente, não te imaginava ajustável. Habituei-me a ver-te exclusiva mas não como um par, éramos sapatos do mesmo pé.
E todo o universo dos meus sentimentos e sensações, dos meus instintos e impulsos, dos meus prazeres e repulsas se reorganizou em torno desta impossibilidade. Há uma compatibilidade, uma acomodação entre dois diversos que jamais pode existir entre dois idênticos; amar-te seria incestuoso.
De tudo isso, só a saudade do pó nos pés nus, que são muito mais as coisas que eu esqueci do que aquelas que recordo. E as distâncias enormes. Ou me engano muito ou andávamos mais rente ao chão, mais perto do coração da terra, tanto, que me lembro da transpiração quente que subia do que parecia simplesmente uma passadeira de pó apenas pousada sobre os vinhedos, distorcendo a paisagem à distância. E os sons ecoando a lonjuras impensáveis, dessincronizados com as imagens, como num filme mal montado.
Dá-me a ideia que o mundo acelerou, que as pessoas perderam a paciência, que tudo se tornou mais assertivo. Hoje ninguém me acusaria de impudências por violar uma saca de milho; seria simplesmente tomado por imbecil.
Mas agora que isto me veio à memória tenho a noção de ser justamente essa pudicícia que se perdeu com o tempo, e o que me ficou foi um sentimento de perda, de oportunidade perdida.
O Largo do Sobreirinho parece-me grande demais hoje. As folhas dos castanheiros da Índia foram mudando de tonalidade como se um fotógrafo tivesse estado a corrigir a cor no monitor de um computador. Mas toda a cor perdeu a vibração e se foi tornando pardacenta à medida que a tarde esmorecia. As pessoas regressam a casa.
O carro em que vens para.
Quando a porta do carro se abriu, ainda ouvi a voz do meu avô a dizer que toda a mulher se pode ajustar à medida do homem, e agora, essas palavras despertaram em mim algum instinto primário que a inocência perdida já não pode ignorar.
Tu sais, e as crianças e o pai demoram mais um pouco. Mas não sais logo. Uma perna alonga-se do carro até ao lancil. A biqueira da sandália a tatear o passeio. E toda a extensão desnudada da tua perna a sair do carro numa ligeira torção, que realça a dinâmica das curvas e excita o canibalismo da minha imaginação. Sais e olhas para onde estou, mas como se não me visses. Uma falsa omissão como uma mensagem de cumplicidade. Olhamo-nos por um eterno segundo que me rebobinou a memória até um lugar na nossa infância, onde poderíamos ter tido ao menos um amor impubescente.
E vinda sem aviso, obsessiva e impúdica, a imagem da minha mão a afundar-se nas intimidades da saca de milho.
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