14 janeiro 2010
As Cinco Estações do Ano em Aguim
1 - O Último Verão da Minha Inocência
Antes do alcatrão, o pó nas estradas e os pés das mulheres encortiçados ignorando as pedras. Eu olhando o meu mundo de criança rente ao chão; tudo visto de baixo para cima. A ouvir o restolho de uma cobra na erva, o sobressalto dos pássaros numa oliveira. A sentir a paciência das vinhas, quietas, a aguardarem que as uvas amadurecessem.
– Tudo a seu tempo.
A minha avó, especialista em paciência, compreendia as vinhas. Eu não: – Queria um cacho, vó.
– Tudo a seu tempo.
E eu desistia porque o Verão era longo.
Os adultos falavam de coisas estranhas. Falavam depressa de mais. E tinham sempre que fazer.
– Porque demorastes tanto, Zé?
E o meu pai: – Fui abicar as couves.
Só o meu avô se deixava às vezes ficar a fingir que dormia a sesta. A fingir: porque a mão enxotava as moscas como o rabo do cavalo. De vez em quando o cavalo resfolegava, amarrado à velha figueira, com o saco de ração pendurado nas orelhas para não ter de dobrar o pescoço para comer, e o meu avô com o máximo de ternura que lhe conheci: – O que é? – E ele acalmava-se. O meu avô falava frequentemente com o cavalo. Não admira, passavam muito tempo juntos.
As moscas inquietas, e zás, a mão a enxotá-las de um lado e o rabo do cavalo a enxotá-las do outro. O zumbido das moscas a fazer-me sono. E o restolho da erva. O sobressalto das oliveiras. A paciência das vinhas.
Às vezes, sem eu contar, havia festa e toda a gente deixava de trabalhar. Tudo cheirava de modo diferente. Eram os mesmos cheiros, mas mais alegres. As mulheres aperreavam os pés encortiçados em sapatos enormes, só por uma questão de elegância, o que lhes dava um andar torturado, e os homens usavam com orgulho uma tira de pano pendurada ao pescoço, elevada à categoria de gravata, e um raminho de limonete atrás da orelha para dar um toque de classe. Então é que eu notava que mal se lavavam, que apenas se desenxovalhavam. Passavam uma água pelo corpo, tiravam a maior, mas o encardido ficava. A marca do castigo, da labuta, da tortura habitual do trabalho. Tão habitual que havia um certo desassossego nos dias de festa, como se os corpos habituados ao esforço se sentissem descontrolados sem esse lastro pesado do trabalho.
As festas apanhavam-me sempre de surpresa. Num dia tudo tinha os mesmos vagares, e no outro tudo acordava eufórico, e, quando eu me habituava, lá voltava tudo inesperadamente à mesma rotina. Os cheiros acalmavam de novo, familiares de novo, como uma cama já afeita ao corpo.
O cheiro hormonal do cavalo, o cheiro nutritivo do estrume, o cheiro cáustico do lume, o cheiro acre da massa lêveda a fazer adivinhar o cheiro sem adjetivos supérfluos da boroa fresca.
Quando não fingia dormir o meu avô assobiava; só uma nota, incessante, distraída. Ele a olhar para um lado e as mãos a fazerem as coisas numa destreza mecânica para o outro. E o assobio sempre igual, só interrompido para tomar fôlego. Do outro lado da rua o Ti Zé Sécio batia, batia, assobiando também uma nota só. E o ferro gritava a cada marretada, e depois num arrepio cortante fazia ferver a água fria da pia ao lado da forja. Saía a chiar e sem fôlego daquela têmpera rude e o Ti Zé observava-o com minúcias de ourives e, às vezes insatisfeito, reiniciava a tortura.
O meu mundo por essa altura dividia-se em dois grupos de pessoas: os que passavam fome e os que tinham falta de apetite. Ora, se os que passavam fome nunca tinham falta de apetite, porque me torturavam em casa para eu comer? Eu olhava invejoso para a voracidade do Xico Pã. Ele mergulhava os dedos no barro e trazia para cima um pequeno tubérculo branco. – Experimenta, é uma zonzelha. – E eu surpreendido com o sabor picante a rabanete.
Zonzelhas no Barreiro e medronhos no Monte Grande, tâmaras no Sobreirinho e amoras em Vale de Cide. A fome era uma virtude.
Ele a devorar um tomate e a rir-se de me ver mordiscar o meu, cheio de escrúpulos.
Foge repentinamente sem eu perceber porquê. Eu pasmado a vê-lo ir embora, e só a perceber que o momento era de perigo ao ver a ira nos olhos do Sr. Luis Bandarra.
O tribunal na loja da minha mãe com o Sr. Luis a exibir o meu boné de palha como corpo de delito, e a apontar a minha camisa com a marca ensanguentada do crime. Eu a sentir-me o assassino de um tomate.
– O meu filho a comer tomates da horta? – A minha mãe confusa. – Mas ele é tão biqueiro… – Eu nem merecia castigo.
O meu pai ofendido na honra, de mão irrequieta, e as minhas orelhas a arder. O meu avô a defender-me só para contrariar toda a gente, e eu a jurar arrependimento de lágrimas manhosas.
– Vejam lá, uma amizade tão grande com o cachopo mais pobrezinho do lugar.
Ficou decidido: tudo se deveu às más companhias, e ficou toda a gente satisfeita. Só a mão do meu pai teimosa, com a minha mãe a segurá-la: – Ó Zé!
O meu amigo com alcunha de deus grego a roubar para matar a fome e a levar com as culpas pela minha cobardia. Eu sempre tão censurado pela minha falta de apetite a concluir finalmente que a fome não era uma virtude. Virtude era saltar o muro, e a ansiedade no meu estômago a confundir-se com a fome do meu amigo. Virtude era trepar a nespereira e comer as nêsperas mornas do sol. Virtude era estar alerta e fugir sem sequer ser visto – o Ti Mariano com a vara de picar os bois chegava sempre tarde.
Quem não guardar no cacifo da memória uma delinquência infantil não sabe verdadeiramente o que é ser feliz.
Mas às vezes as coisas paravam. As pessoas ganhavam um passo lento, inconsequente, as pernas sem saberem para onde se dirigirem, os olhos pasmados e as mãos inúteis, sem uma ocupação que lhes desse préstimo. Diziam-se frases consensuais, parcimoniosas, tão previsíveis que normalmente começavam por "Pois é…" A fatalidade punha as pessoas de acordo. Olhavam-se e encolhiam os ombros, porque todas as palavras possíveis eram escusadas e todas as outras eram inconvenientes. De vez em quando ouvia-se um "Coitado!" E depois o choro sem pudor. O desespero sem o constrangimento da etiqueta.
E por fim, tudo a sossegar de novo. Todos os sobressaltos a serem absorvidos pela rotina.
Eu olhava a parreira e as uvas ainda verdes. Que longo foi aquele Verão.
Um dia vieram uns homens e tiraram o telhado da cozinha. Assim, sem me avisarem. A gente a comer o escorrido e as estrelas por cima de nós. Às vezes passava um morcego a dar estalidos muito rápidos. A Lua e as estrelas a transformarem o meu jantar numa coisa sobrenatural.
A pequenez da cozinha do forno e toda a imensidão do universo. Será que vista das estrelas aquela mesa, com todas as pessoas que eu amava, ainda vivas à minha volta, pareceria igualmente sobrenatural?
Alguns dias depois, os homens vieram devolver o telhado, e eu levei uma semana a protestar por me terem tirado o céu.
Foi mais ou menos por essa altura que eu reparei na mudança do olhar. Os mesmos olhos, o mesmo olhar mas uma demora exagerada, uma atenção excessiva. As mãos também mais lentas, e o meu corpo a responder sem eu querer. Os gestos de sempre eram agora mais significativos, intencionais. Mas havia qualquer coisa de deslocado, de desconfortável, a querer tomar posse de algo em mim, algo ainda adormecido que reagia estremunhado a um prazer prematuro.
E tudo mudou repentinamente naquele verão. As uvas maduras na parreira do terraço a oferecerem-se em despudores de fêmea no cio, e eu, envergonhado com a minha confusão quanto às virtudes da fome e da gula, a tentar prender a minha atenção às tremuras do coiro do cavalo a reagir às moscas. A tentar perceber se o meu avô estava a dormir enquanto a mão imitava uma cauda a dar, a dar. Mas eu, na verdade, desatento, definitivamente desatento, ainda sem saber que nunca mais na minha vida conseguiria acertar o passo por aquele ritmo conformado, em que cada coisa ocupa apenas o seu lugar, e no tempo esperado. Em vez disso, um desassossego, uma urgência, uma inquietação; uma busca desnorteada de algo em falta mas inteiramente desconhecido. A descoberta da incompletude do corpo: o que dantes lhe era apenas adjacente e fraterno, era agora complementar e cúmplice – o pecado da fome.
Os arreganhos trocistas dos adultos a lerem os meus pensamentos. Tudo de repente tão divorciado, tão adverso, tão exterior a mim.
Por fim, como uma memória que se desvanece, a desidealização da Natureza: a erva sem mais bulício do que a passagem ocasional de um bicho, alguns pássaros nas oliveiras mudas, nada mais do que alguns pássaros.
E as vinhas? Perdera definitivamente naquele longo Verão, o sortilégio de me espantar com a paciência das vinhas.
2 - A Alquimia do Outono
Recordo esse tempo como quem olha para uma foto antiga que achou num baú velho.
Aquele ali sou eu, dizemos incrédulos por também termos sido crianças. Então temos a tendência irritante de dizer que fomos felizes nessa altura como nunca, desvalorizando tudo o que de bom aconteceu entretanto. Algumas pessoas, como se vê, chegam mesmo a escrever coisas sobre este assunto, como refúgio para as frustrações da idade madura.
Mas devo ter sido feliz, porque me lembro de estar deitado no chão a sentir o calor que parecia vir do próprio coração da Terra, e o cheiro da erva fresca acabada de pisar, e todo o azul que se pode imaginar, lá em cima; não como se tudo me pertencesse, mas como se eu pertencesse a tudo. E a voz da senhora do Porto a inventar histórias ali ao lado.
A senhora do Porto era uma velha, porque tinha mais de trinta anos, e era estrangeira porque tinha uma acentuada pronúncia do Norte; mas tinha o dom hipnótico de reunir à sua volta um bando de putos, que quando não jogavam à bola no Largo do Sobreirinho, todos contra todos para uma baliza só, entretinham-se a pôr em prática uma vertente extremista e ultra-radical do darwinismo, que consistia em matar cobras no Monte Grande, em pôr sapos a fumar com cigarros de barba de milho até estourarem, ou, quando tomavam banho na Lagoa do Olho, em fazer concursos de matar rãs à pedrada.
Devo ter sido mesmo feliz porque só me recordo de uma coisa que me ensombrou a infância, algo verdadeiramente incapacitante: não ser capaz de caminhar descalço.
– Olh'ó estapôr do cachopo que parece que vai todo engalicado. Pro qu'é que no calça o raça dos sapatos?
Aquele ali sou eu, a treinar a andar descalço pela estrada de Vale de Cide abaixo, duplamente envergonhado: por aquela figura ridícula de sapatos debaixo do braço, e por me dar a impressão que o chão eram só cacos de vidro, quando os meus amigos quase todos jogavam à bola descalços.
Mas depois chegava a senhora do Porto e passávamos para outra dimensão. As histórias começavam ainda na estrada, connosco a enxamear à sua volta calcando o finíssimo pó, mil vezes moído pelos aros das rodas dos carros de bois; e depois pelos campos fora, no convívio da miríade de insectos e vermes, de que a sociedade, amante dos produtos e valores liofilizados, ainda não nos ensinara a sentir nojo.
Entretanto, nos vinhedos do Solão, a alquimia do Outono transformava lentamente o verde das parras em cobre ou em ouro puro.
Depois da vindima em Aguim, colher uvas em vinha alheia deixava de ser roubo para ser rebusco, e os vindimadores deixavam de propósito algumas uvas de melhor qualidade para mais tarde as irem colher para si. Ora, toda a gente sabe que a necessidade que leva ao acto aguça normalmente o engenho, que por sua vez inspira a tolerância do julgador, mas nós antecipávamo-nos, sem respeito por esta regra da mais básica alquimia da justiça e pilhávamos os vinhedos em busca de um cacho ou ao menos de uma esgalha esquecida.
– Serafim, Serafim, s'eu achar é pra mim!
O Outono era o Verão cansado. Cada vez mais, a esturreira do sol dava lugar a um calor suportável, e ao fim da tarde o dia dava mostras de sonolência. E o calor que restava era um hálito morno que parecia vir mesmo das entranhas dos silvados e dos bosques. Até o canto nupcial das cega-regas se enchia de preguiça; ou então tinha sido bem-sucedido, e por essa hora já tinham passado das palavras à ação.
E os camponeses com passadas largas e lentas de enxada às costas. O corpo a descambar de cansaço. Passavam por nós, tão cansados que só diziam:
–Tarde!
Deixando que a entoação do cumprimento fizesse subentender a frase completa. E as mulheres atrás. Derreadas. Com grandes feixes de erva à cabeça e com um ar tão triste. Sempre vestidas de negro. Porque tinham sempre um ar triste as mulheres da minha terra? Às vezes riam como riem as crianças com fome: um pequeno intervalo na desgraça apenas, para depois continuarem a ser tristes. Nunca pensei nisto antes. Devo ter sido feliz, sim, porque nunca pensei nisto antes.
Quando deixou de vir a senhora do Porto ou quando deixei eu de a acompanhar? Não tenho a menor ideia. Talvez tenha sido na mesma altura em que aprendi a ter nojo dos bichos e das coisas da terra; ou tal como de um sonho, devo ter acordado apenas, para entrar noutras fantasias: para a puberdade, tão hormonal e prosaica como estúpida.
Um dia, na loja da senhora Idalina, vi-a a comprar uns chinelos de pano, que se destinavam a aproximar-se da empregada doméstica para poder espiá-la sem os seus passos serem ouvidos, e sofri um desgosto.
Com a senhora do Porto aprendi a dar valor às coisas até aí dadas como garantidas, por ter nascido no meio delas, mas que aos olhos de quem vê de fora são preciosidades; aprendi sobretudo a ver as coisas à minha volta para além da superfície e, na falta de uma história convincente para cada uma delas, simplesmente imaginar uma, porque a fantasia é que torna a vida sublime. E isso colocava a senhora do Porto numa esfera do meu imaginário onde não se fazem canalhices, e tudo quanto recebi dela era demasiado valioso para ser posto em causa por causa daquele pecado.
Nunca consegui resolver esse conflito: era impossível condená-la e era impossível absolvê-la. E a ela devo isso também: ganhei a capacidade de conceber o indivíduo na sua multiplicidade, de aceitar o anjo e a besta coabitando dentro de todos nós, isto é, de assumir humildemente a consciência da humana mediocridade.
3 - O Verão de São Martinho
Os cachos trincadeira e maria-gomes ao pendurão como úberes atraindo mosquitos e a minha gula. Daqui de cima, do sobrado que um dia será o primeiro andar da minha casa, pela porta que dá absurdamente para o telhado do alpendre, vejo lá em baixo um grupo de homens caminhando lentamente. Vêm do cemitério e vão em busca duma adega. Um ou dois malápios para fazer boca, e dois ou três copitos de vinho para molhar a goela. E logo se desfiam as maledicências, que na boca dos homens se disfarçam com um sarcasmo corrosivo e cruel, para não se confundirem com a alcoviteirice feminina, adocicada com meneios traiçoeiros; essa sim, obviamente manhosa e pérfida.
As primeiras chuvas como uma ameaça experimental, a ver se estamos distraídos, retiram, como se quisessem fazer negaças ao Inverno, e o sol esperançoso regressa. Os castanheiros da quinta do Sobreirinho de folhas afogueadas, de um castanho quase vermelho, e os plátanos a ganharem uma alegria nas copas cheias de sol, de um amarelo dourado, a sobressaírem ao verde, que em vários comprimentos de onda matizam o arvoredo em pano de fundo.
E no sobrado os santórios apurando sabores: os cachos ao pendurão, as peras em intumescimentos erógenos de puro açúcar e as bravo-de-esmolfe a perfumarem tudo, até metros e metros em redor.
Existe um encanto de doce decadência, nestes dias soalheiros que antecedem a força do Inverno, só comparável à beleza de uma mulher a lutar contra o murchar do viço: uma doçura serôdia de fruta madura, como os santórios no sobrado da minha casa.
E um último alento de energia efémera revigora o ar de calor e luz, num ressuscitar patético de moribundo.
Mas todos acreditamos nisso, porque nos apraz, porque nos convém; porque se não acreditamos nas ilusões, só nos resta a realidade, e a realidade é que o Inverno se seguirá à morte inelutável do Verão, ainda que ele se levante pelo São Martinho, com a derradeira coragem de um soldado ferido de morte para nos dar uma falsa esperança de vida.
4 - O Deslumbramento do Inverno
O cavaco de cerne fumarento preso na pinça da candeia de lata nunca deixava a Ti Maria Adôa às escuras.
As sombras assombrando as paredes.
A imagem de uma família humilde a comer as batatas da ceia sentada na minha memória para sempre. Um dia reconheci-a num quadro de Van Gogh.
Em minha casa a luz elétrica faltava sempre quando era mais precisa. Virá ainda hoje? Não virá? A incerteza à luz de uma vela é sempre mais vacilante, e as sombras do cavaco de cerne a mudarem-se para as paredes da minha cozinha.
Se não chovesse eu dava uma corrida até ao Rebelho para ver o Ti Zé Quiaios a manejar os fusíveis da cabine elétrica como um organista a puxar os registos de um órgão de igreja. O Ti Zé Quiaios era quase cego, com os olhos dilatados pelas lentes de cu de garrafa, mas as suas mãos tinham uma precisão de milímetros. Ou era ele que conhecia a cabine elétrica, ou então era a cabine que o conhecia a ele.
– Ai no auguentas? Espera aí que já cospes!
A ferramenta e a mão, o nervo e a eletricidade, a cegueira e a luz. Tudo tão irmanado. Tão afeiçoados um ao outro: homem e máquina. E Aguim iluminava-se por fases e apagava-se por fases, e os fusíveis a estourarem, e o Ti Zé Quiaios a reforçar os bornes. Uma luta. Não uma luta: um jogo. Um jogo não: um namoro, uma sedução mútua entre a tecnologia e a humanidade; porque nesse tempo a tecnologia casava com a humanidade.
Quando Aguim finalmente ganhava a cintilação dos presépios, o Ti Zé Quiaios regressava a casa dele vitorioso, e eu à minha deslumbrado.
Os invernos eram eternos. E dava a ideia que começavam sempre antes do tempo. Eternos, porque quando ainda não conhecemos suficientemente o presente, ele parece não ter fim; a eternidade é apenas a ignorância dos limites. Habituámo-nos ao Verão e de repente o tempo a tomar balanço no Outono para a chuva nos apanhar desprevenidos.
– Podia esperar que apanhássemos os cachos da Casqueira.
O meu avô e o clima poucas vezes estavam de acordo, mas o meu avô já sabia de mais para se deixar surpreender; só os inocentes têm esse privilégio.
O Inverno, na verdade, começava muitas vezes a meio do Outono, como a morte começa muitas vezes a meio da vida. Quando começamos a morrer? Sei lá! Mas há sempre uma primeira chuvada que nos estraga a vindima, uma chuvada que nos apanha sempre desprevenidos. Acho que era por isso que o meu avô não gostava do Inverno.
Vista do alpendre do pátio, a vida na rua era um filme.
O Ti F'lipe batendo com um maço na madeira e transformando uma molhada de aduelas numa pipa de vinho. O novo aprendiz de pé sobre um dos tampos a segurar as aduelas pelo interior como uma margarida de pétalas abertas, enquanto por fora o Ti F'lipe as ia fechando. Quando a margarida se fechava, nascia uma tulipa de madeira que surpreendia o aprendiz, preso lá dentro aos berros.
O Ti Zé Sécio com uma enorme tenaz encaixava um aro em brasa numa roda de um carro de bois. Batia-lhe com o malho à vez com dois ajudantes. O fogo a dilatar o ferro, os malhos a domá-lo e a água a contraí-lo em torno da roda; tudo envolto em fumo, vapor e algazarra.
O Ti Antóino Mateus dedilhando os vimes como um tocador de harpa, e quem havia de dizer que aquela harpa de vimes ia acabar num poceiro para a vindima!
Tudo tão vivo, tudo tão animado. Uma coreografia que olhada assim de perto parecia não ter outro propósito que deslumbrar o meu olhar. Mas olhando de perto nunca se percebe bem o propósito da vida; só muitos anos mais tarde percebi tudo numa ópera de Verdi.
No enquadramento do portão, Aguim desfilava num traveling rápido, com uma banda sonora ao vivo. O Ti Zé Sécio ferreiro nos metais, o Ti F'lipe tanoeiro nas madeiras e o Ti Antóino Mateus cesteiro nas cordas. E a voz de falsete da moça serrana a fazer as camas de lavado sob o olhar oblíquo do meu avô. – Andas-me muito delambida… – Enquanto passava a carda com vagares de barbeiro no lombo do cavalo.
Aos primeiros pingos, a chuva fazia acelerar o filme do portão do pátio, com as pessoas a fugirem e a falarem mais alto, mas logo a abrandarem de novo conformadas. Um saco de estopa com um dos cantos encaixado para dentro do outro, e pronto, aí está um capote reforçado. A chuva molhava à mesma mas pelo menos dava-se-lhe luta.
E nisto o assombro dos trovões. A minha avó a dizer uma ladainha elevando a voz à medida que a trovoada aumentava, não fosse Santa Bárbara não ouvir bem por causa do barulho, e a confirmar se a cruz de alecrim benzida no Dia de Ramos estava atrás da porta para afastar todos os agouros.
E resultava, porque a trovoada afastava-se e ia fazer barulho para outro lado. E depois ficava a chuva apenas, e o som da chuva parecia silêncio.
– Ela é cá precisa.
– Podia esperar que apanhássemos os cachos da Casqueira.
– Este ano vai ter menos grau.
– Pró ano começamos mais cedo.
As conversas à lareira da cozinha do forno só faziam sentido para os adultos. Falavam para si próprios como se estivessem sós, mas cientes de que se falassem todos a mesmo tempo, as várias solidões se uniriam para criar uma confraternidade. Mas eu acho que era o encantamento do lume na lareira que tornava aquelas sombras taciturnas nos rostos luminosos da minha família. O lume a fazer gemer as cavacas molhadas. Às vezes um estalido e os tições a aconchegarem-se uns aos outros. E a trovoada tão longe, agora que a ladainha da minha avó era só por mera precaução um simples tremelicar dos lábios.
Dias e dias, noites e noites, sem parar. A chuva era eterna também. Passada a surpresa, as coisas permaneciam para ficar, não davam um único indício de que teriam um fim. Havia lagos no Largo do Sobreirinho e rios que desaguavam na minha valeta. A água era uma constante à face da terra.
Mas uma noite, todo aquele dilúvio acalmava como um pranto de viúva esgotada de mágoa e resignada ao vazio do corpo.
Primeiro começava por nos surpreender o silêncio. O silêncio é o que ouvimos quando termina um ruído. Agora o silêncio era o xilofone das gotas grossas dos beirais a baterem nas latas à porta da oficina do Ti Zé Sécio. O vento norte foi-se embora desvairado pelo Caminho dos Poços abaixo e a noite sossegava finalmente. E logo mais, a madrugada acordava sem outro sobressalto que a brisa a trazer consigo os primeiros frios.
Um vidro a cobrir a água do tanque, a bomba de alavanca que não deitava uma gota, o cavalo a resfolegar na cavalariça, os gatos em novelos pelos cantos e a minha mãe a enchouriçar-me de roupa. Eu tinha que caminhar de braços e pernas abertas por causa das várias camadas de pano que me transformavam numa cebola ambulante.
– Cuidado com as correntes de ar.
Em minha casa nunca havia duas portas abertas ao mesmo tempo. Para mudar de divisão tínhamos os cuidados de um mergulhador na câmara de descompressão de um submarino.
Em breve o frio e a geada passavam a ser eternos também.
E lá faltava a luz de novo.
Logo aparecia uma vela acesa, mas quase tudo ficava na escuridão, porém, as coisas importantes sobressaíam a esta luz. Acho que é daí que vem a crença que é mais romântica. Se foi esta incapacidade de ver para além de certos limites que nos permitiu criar a conceção de infinito, foi ela também que nos permitiu criar a da intimidade. Se não, de onde me vem esta ideia de que jantávamos abraçados uns aos outros?
E a luz voltou. Apagávamos a vela e as baratas regressavam ao pátio. E quando nos preparávamos para continuar a ceia, voltava a falhar a luz e acendíamos a vela de novo.
E eu imaginava o Ti Zé Quiaios quase cego enrolando e desenrolando fios nos bornes dos fusíveis, pontificando do seu púlpito da mais avançada tecnologia a eterna luta entre a luz e as trevas, e a dizer sentencioso: – Ai no auguentas? Espera aí que já cospes!
5 - O Recobro da Primavera
A chuva a atormentar as folhas da laranjeira, e dentro de casa a ideia que o mundo é diferente: um conforto de mantas e escalfetas e a ausência do vento, só a chuva impotente de encontro às vidraças. O Inverno acaba por passar para os corpos. Os pés e as mãos a escaldarem em frente do lume e um frio cá dentro ainda. O rádio a crepitar estalidos com uma música de piano lá no fundo, tão no fundo, que parecem dois mundos também, o dos ruídos e o da música.
A minha mãe de termómetro na mão a ler o tamanho da minha gripe. O meu pai à porta, à espera de ler nos olhos dela o que ela lê no tubinho de vidro. E depois eu a ler nos olhos dele o que ele leu nos dela.
A minha mãe sacode a minha gripe do tubinho. Sacode, sacode e olha desanimada para o meu pai.
– 39!
– 39?!
– 39.
Esta casa é tão alegre quando não chove. Na sala, os retratos de antepassados defuntos não me tiram os olhos de cima, mas quando não chove nascem flores no cachepô da mesa.
Agora a chuva lá fora a criar bolor nas paredes cá dentro, a humidade a desenhar figuras nas paredes.
Olhando de certa maneira:
– Um cão, mãe.
De outra:
– Uma pomba.
– É a febre, meu filho.
Devia faltar pouco para o Carnaval, porque chegada a noite, lá fora, alguém usava um funil de almude como megafone para lançar pulhas ao namorado de uma vizinha, enquanto um coro ao lado uivava a cada provocação:
– É verdade! É verdade!
E na sala, os defuntos pendurados nas paredes sem tirarem os olhos de mim.
Muitos anos mais tarde, haveria de substituir os retratos todos por telas sujas de tinta com títulos inteligentes para serem tomados por obras de arte. E a minha mãe dividida entre a saudade dos olhos dos defuntos e o afeto pelas minhas manchas de tinta.
Mas nessa altura, ainda, os olhos da minha bisavó, pendurada na parede acima da cómoda, a olharem-me pela frincha da porta. E a aflição das folhas da laranjeira. E os dedos esqueléticos da figueira a lutarem com o vento. E o inverno no interior do corpo, embora tanto calor no rosto. E a minha avó a insultar a gripe:
– Aquela cadela que não o larga!
O sono era um delírio com as cores da vigília em negativo. Só que o quarto não tinha paredes e a mesma imagem teimosa a repetir-se vezes sem conta: um rio de tintas escuras e eu a afogar-me, a afogar-me. Depois desapareceu tudo e passou uma eternidade. Ou um instante, tanto faz; quando se perde a noção do tempo, tanto faz.
Acordei.
E quando acordei, a cabeça tão leve, uma dorzinha de fome tão boa, os sons da rua a enfeitarem o silêncio, uma voz que se aproxima lentamente, tão lentamente. Que passa e continua lentamente, tão lentamente.
As pessoas vão-se levantando e os ruídos da casa repentinos, estremunhados.
Alguma coisa mudou no mundo e não foi só a minha febre, a minha dor de cabeça, a preguiça que me dissolvia todos os músculos do corpo. Sinto uma lucidez que me vem de fora. Da luz que altera as cores do quarto, dos sons que parecem decididos.
Tudo parece ter um propósito qualquer.
Havia um ruído indeciso que desapareceu. Havia uma velatura amorfa que se dissolveu. Uma humidade pesada que enxugou, deixando a superfície das coisas nítida e sólida.
Mas a luz ainda húmida.
Um dedo da figueira toca na vidraça um código de morse a anunciar que algo alegre se aproxima.
Não havia mais música que o som da bigorna do Ti Zé e o perfilar das vozes que vinham todas do lugar e se dirigiam todas para o campo. Primeiro só algumas madrugadoras sem pressa, depois em maior número como um coro no compasso certo, e por fim as tardias, que passavam quase a correr. Não havia mais música do que isso, e se houvesse seria de mais, porque uma alegria amanhecia no corpo, uma euforia de festa que entrava com a luz da janela e que tornaria toda a música desnecessária.
A minha mãe à porta num júbilo de puérpera a ver-me despertar. A minha avó arrependida da imprecação da véspera:
– Aquela cadela! Que deus me perdoe.
O meu pai a aliviar da memória o agouro da pneumónica e a lutar com uma lágrima embaraçosa.
Em breve eu livre dos abafos e das portas fechadas. Em breve a corrida por entre as vozes dos meus pares como um coelho entre coelhos, como um pardal entre pardais.
Será que só retive o essencial ou era tudo verde? Recordo quando muito uns pingos de amarelo sobre o trevo, e umas erupções de púrpura na bungavília que enfeitava com as suas flores de papel o muro do Senhor Afonso Bandarra. Ali, eu sabia um ninho de pintassilgo. Sabia eu e o gato da Ti Maria Adôa.
Uma madrugada, os gravetos e a penugem no chão e uma pintassilga quieta num ramo. Uma comoção de pólen no nariz e lágrimas de alergia nos olhos; ou então, eu a entender o júbilo de puérpera da minha mãe.
Nada acontecia de especial em Aguim quando chegava a Primavera. Tirando o arraial do São José. Uma festa meio cristã meio pagã. As bandas a tocarem ao despique e uma parelha de cavadores a desenterrarem a Pedra-da-sesta.
Mas quando a Pedra-da-sesta ficava ali à espera da festa do Castro para ser enterrada de novo e os coretos, desfeitos no chão em despojos de palmas e açucenas, davam a ideia de que se travara ali um combate, regressava o sentimento de que todo o som era quase música, e que mais música seria de mais; a não ser, às vezes em dias muito especiais, quando o Sr. Manuel da Leonarda decidia acompanhar ao violino o concerto do Ti Zé na bigorna.
Nada acontecia de especial porque o Sol fazia a festa sozinho. Que tinha o Sol da minha infância que nunca mais o vi assim? Nascia mesmo por detrás do Monte Grande e já vinha em festa, e punha-se ainda alegre atrás da torre da capela.
À noite apetecia dormir e de manhã apetecia acordar. Tudo estava certo na Primavera.
Na verdade, tudo me parece ter estado certo nesse tempo. É costume, quando se olha o que já aconteceu, porque as coisas más já não podem fazer-nos mal; como quando olhamos pelo retrovisor desvalorizando as derrapagens perigosas que fizemos e amando já a estrada percorrida.
E nesta viagem em que parei algumas vezes para corporizar esse amor, as cidades foram as minhas verdadeiras amantes: Coimbra, a mulher tricana de todos os meus dias. Lisboa, a promíscua, tão fiel de dia e tão infiel de noite. Hamburgo, a altiva, com as suas cicatrizes de guerra a ensinar-me que há vida depois da morte. Mueda, a grande prostituta, onde desci ao mais baixo patamar da humanidade, que me levou quase tudo e que apesar disso me deixou, não sei em que parte de mim, um amor fatal e doloroso. E Aguim. Aguim trigueira, tisnada do sol, elevada sobre uma colina para parecer mais alta, onde tudo o que há em mim nasceu.
Nasceram as palavras na sua pronúncia um tanto abrupta no início das frases e cantada nas vogais finais, e, onde não havia vogais, a acrescentar um i.
Nasceu a música. O violino velho do meu pai de onde só saía o som dorido da única corda sobreviva, e o milagre da metamorfose do ruído em música, quando em dias especiais o violino do Sr. Manuel da Leonarda transformava a bigorna do Ti Zé Sécio no mais glorioso timbale que se pode conceber.
Nasceu esta minha fidelidade de rafeiro doméstico pelos meus amigos, que julgava tão poucos, e afinal muitos; tanto que, vão morrendo já e continuam meus amigos.
E nasceu esta minha paixão de gato vadio pelos becos e pelos telhados, pela tessitura prolixa das cidades e pelo deslumbramento da Natureza; tanto quanto me lembro, desde que via o Sol a erguer-se por detrás do Monte Grande já em festa e ainda convalescente do Inverno.
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9 comentários:
Assim dá gosto...ler!!!
Brilhante! Meu caro amigo Manuel Bastos!
Parabéns!
Impressiona!è sempre um prazer ler os seus "escritos"!!
Para quando um novo livro?
Se estiver do lado de cá do Atlântico, quero estar na "apresentação".ok?
Um abraço e um pedido.
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