O largo da Capela está vazio. Fazem-me falta os velhos sentados no banco corrido à frente da loja do Sr. Boanerges. Eles, cansados também, fitando a fachada da capela da Nossa Senhora do Ó como se estivessem a ver um filme enquanto falavam entre si.
Ia a caminho de Águeda e deu-me para subir o Barreiro e ficar aqui um bocado. E aqui estou eu como se estivesse a ver um filme projetado na fachada da capela. Parece mais nova a capela, mas o largo está vazio, e eu senti-me cansado de repente. Sinto-me como um marido arrependido, regressando a casa depois de um serão de orgias. Tudo parece olhar-me com uma falsa distração, não me dando atenção para me fazer sentir insignificante.
Pode trazer-se a fisionomia de um rosto, as estrofes de um poema, os compassos de uma música dentro de nós; eu trago a torre de uma capela.
Sinto-a nitidamente, erecta sobre a colina de Aguim, sobreposta a um céu de cetim quase limpo.
Uma pessoa vem ainda longe e a sua silhueta já nos faz sentir em casa, como se sentirão os mareantes ao verem ao longe o farol da Barra.
Desculpa ter chegado tarde, desculpa ter-me distraído com as horas. Saí para tomar um copo e quando dei por ela tinham passado trinta e tal anos.
Eu sei, eu sei. Foi a aventura que me levou, a viagem, a pior das vertigens: a guerra. Saí daqui para ir matar e morri por lá… nunca mais voltei de verdade porque entretanto já era outro.
Já nem sei se sou daqui, mas ao passar lá em baixo algo me chamou, como que a meter conversa sem ter assunto, e eu a fazer pisca para a direita… e agora deu-me para falar sozinho como um bêbado abandonado por lhe terem fechado a porta de casa.
Trago uma torre comigo. Sei a textura das pedras dos degraus em caracol. Sei o silêncio das pedras. A quietude das pedras. A temperatura das pedras. Testemunhas pacientes do Tempo. Eu a subi-las enquanto lá em baixo na nave da capela se rezava a missa. E eu a tentar ver o mar do patamar superior… Era bom, reconfortante, olhar o horizonte e saber que para lá do horizonte existia o mar, mesmo que não o visse dali; e ter essa certeza, como todas as outras certezas que eu tinha então, parece-me agora uma garantia de ter sido feliz.
Um dia fiz ali um pecado e não houve uma única daquelas pedras que me denunciasse; e Deus, não o que alguns homens criaram à sua imagem e semelhança, mas o impossível pai que todos gostaríamos de ter, a rir-se cúmplice, enquanto no Largo da Capela as bandas tocavam ao desafio.
Mas hoje o Largo da Capela está vazio, vazio como quando eu saía do meu quarto para ir brincar no Sobreirinho e os meus amigos já tinham ido todos embora. Para onde foram todos? Porque não me chamaram? O Faria, o Zé, o Rolo; que amigos são estes que me deixaram a brincar sozinho?
Hoje o Largo da Capela e o Sobreirinho parecem uma parede vazia onde sempre esteve um quadro, um escaparate sem um único livro, uma cómoda de gavetas abertas de onde levaram a roupa, uma estação de caminho de ferro deserta, depois de ter partido o último comboio. E eu com o desalento que só um filho único conhece, quando os seus amigos foram embora sem o terem chamado.
Eu amo uma torre que me pede de longe que pare. Que não siga viagem, que suba o Barreiro e entre na minha casa, mesmo que essa casa seja um templo de adoração a um deus que me é estranho.
Um farol que teima em dizer-me que eu sou daqui, que afinal os meus amigos estão todos à minha espera, que é apenas uma questão de tempo e logo nos sentaremos à mesma mesa com a desculpa de nos apetecer beber uns copos por causa do inocente pudor masculino de assumirmos os afetos.
Se fosse possível, quando for a minha vez de me juntar a eles, gostaria que me rezassem ali uma missa de corpo presente, mesmo que o meu corpo esteja noutro lado qualquer, que pedissem por mim a Deus mesmo sabendo toda a gente que eu fora ateu, ou, se não fosse pedir muito, que se reunissem ali cantando. Só para eu consumar este amor antigo. E por favor… que alguém se esgueire pelas escadas da torre e vá praticar o seu primeiro pecado enquanto na nave os meus amigos que ainda fiquem por cá se despeçam de mim.
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