O Sr. Manuel da Leonarda afina o violino. Uma corda e depois outra. Parecem gemer de dor ao serem esticadas. Depois afina os dedos. Torrentes de notas. Algumas longas, mais longas do que o comprimento do arco parece permitir. Experimenta o violino como quem testa o motor de um automóvel antes da corrida. Agora repete uma nota. Repete-a fazendo-me lembrar um escanção a provar um trago de vinho até lhe encontrar o bouquet.
O Vale d'Aveia desdobra-se encosta a baixo, cheia de retalhos, como uma manta de patch-work e sobe depois, azulado pela distância, até cobrir o corpo deitado da serra ao fundo. Não tanto, que não deixe a nu o seio da Serra do Buçaco, de mamilo erecto desenhado sobre a tela azul do céu. E uma cotovia pousa e levanta voo e pousa. E o violino a despejar torrentes de notas sobre o vale, a incitá-la, a chamá-la. Reconheço os fragmentos da música que o Sr. Manuel da Leonarda vem ensaiando há semanas: O Voo da Calhandra.
Vê-se que os dedos já estão desentorpecidos. Vê-se que o violino já está afinado como um veleiro de cordame tenso e velas retesadas pelo vento preparado para uma longa viagem. Finalmente um pequeno silêncio. Imagino o Sr. Manuel da Leonarda em frente da janela do quarto enchendo o peito de ar como um paraquedista a preparar-se para o salto sobre o vazio.
Onde se meteu a cotovia? Será que parou algures à espera do violino, como eu em cima do terraço da casa da adega? Apuro a atenção. Um fiozinho de som. Um cabelo levemente ondulado pela brisa. Um fumo, um aroma sonoro ainda impercetível ao ouvido. Tão débil que não tenho a certeza de algo ter mudado em mim, senão por uma subtil sensação de leveza. Eu, e a cotovia ao fundo mais leve também. Ganha altura sobre o vinhedo como uma folha solta ao colo do vento.
O ar de final de Outono por sobre os vinhedos do Vale d'Aveia cria ondulações que não vejo, mas que sinto nitidamente no plexo solar. Uma rajada de pequeninas ondas sonoras vêm rebentar de encontro a mim. Na vertigem da paisagem que desce daqui até Vale de Cide, a cotovia ganha altura como se uma corrente de ar quente a elevasse, como se quisesse emergir da maré musical que já inunda o vale.
Do terraço da adega eu domino o vale com o olhar. Da janela do quarto o violino do Sr. Manuel da Leonarda domina-me a mim e ao vale, e a cotovia domina tudo. Tudo, não. Tudo, menos o Tempo, essa quarta dimensão, que para além da amplitude do meu olhar, da profundidade do vale e da altura da cotovia sobre os vinhedos, atravessa tudo e confere durabilidade, através da nossa memória, à consciência que temos das coisas. Mesmo para além da sua existência. Há um passo, uma cadência, uma grelha que baliza essa durabilidade, materializada na teia sonora que atravessa o ar, que me convida ao devaneio e que instiga uma cotovia a ganhar altura sobre o Vale d'Aveia.
O Tempo não é apenas o que tudo domina, o Tempo é o verdadeiro protagonista de todas as histórias. Mesmo uma fotografia tem tempo, não o que levamos a olhá-la, mas o que a separa do nosso olhar. Num momento algures no tempo, uma árvore foi observada, ou um rosto, ou um sorriso, ou uma cotovia levantando voo sobre um vinhedo. O olhar de um pintor prende esse momento numa tela, o olhar de um fotógrafo congela essa efemeridade num instantâneo, na vã ilusão de lhe conferirem perenidade. Noutro momento o nosso olhar cai sobre essa imagem, e cria-se uma nova realidade, mas é no intervalo entre os dois olhares que a história acontece. É esse intervalo que me fascina: a fermentação do mosto em vinho, a sublimação da paixão em amor, a transcrição do evento em História. Os factos têm apenas um interesse meramente nutritivo porque são exteriores à mente humana; o Tempo, e dentro do Tempo a imaginação, são a realidade possível, porque nos dão a ilusão de vivermos a vida. Na verdade, são a vida dentro de nós.
Não sei já onde soa o violino, se na vastidão dos vinhedos se dentro de mim, onde há de ficar para sempre, até que, caldeado pelo tempo, me seja devolvido como uma memória, despoletada não sei por que efémera realidade.
O Vale d'Aveia descendo até Vale de Cide numa vertigem de voo planado. O Vale d'Aveia subindo até à forma erógena do Buçaco. A tarde de Outono cheia de preguiça. O sol oblíquo a desenhar longas sombras sobre o vale e a pintar tudo de cobre e ouro. A alegria da ave. A melancolia do violino. Uma e outra, dentro de mim para sempre. Uma e outra como se as tivesse testemunhado ontem. O virtuosismo do Sr. Manuel da Leonarda ensinando uma cotovia a voar. Uma cotovia levantando voo para dar título à música. Há sem dúvida mundos maiores que a mera realidade.
Não sei já o que é real ou ilusório na minha memória. Mas na memória, aliás, toda a noção do real é ilusória, toda a dimensão do tempo é imaginária; resta-nos dar-lhes forma concreta através da arte, para tornar palpável este ciclo vicioso: facto – conceito; conceito – facto, isto é: a criação humana é a ilusão última. Nada mais fazemos do que fingirmos que é verdadeira a memória que guardámos do insuficiente entendimento do mundo. É isto que faz de nós seres efémeros, e no entanto, será o mais próximo que estaremos da eternidade.
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