28 março 2019

Memórias desconexas




Extraído de “Prope Poetica”

De tanto olhar o poente envelhecem os meus olhos.
O poente é o lago de Narciso. Não há beleza nenhuma no lago. O lago não envelhece adorando a sua imagem nos olhos de Narciso, porque toda a beleza do mundo é uma ilusão humana.
Os meus olhos, aqui, envelhecendo porque adoram a beleza do poente que é deles.
Tanta ilusão de beleza por falta de ti.

Nada me surpreende já. Vejo com a mesma indiferença a coragem e a cobardia. Mas todo eu me encho de ciúme com o desperdício da vida dos jovens. Não contar os anos sem projetos nenhuns, esbanjar a vida por vivê-la sem moderação. Ser feliz por não saber o que é a felicidade.

É preciso ter estado na guerra para saber que o amor é inevitável.
Mesmo quando o sol se põe sem a perspectiva da madrugada. Mesmo quando se adormece abraçado a uma arma. Mesmo quando se acorda na mesma guerra em que se adormeceu.
Porém nunca se é feliz quando tudo está no seu lugar e nós andamos perdidos.

Penso em ti no recreio da escola. Nesse tempo havia um muro entre nós. E sobre o muro uma ameaça de aparteid.
Às vezes vejo um gato sentado no muro rindo de nós. Às vezes ouço um cão ao longe chorando por nós. Às vezes  pressinto uma coruja lúgubre a meio da noite, crocitando remorsos por nós. Só pode ser por não termos uma história para contar.

Se tu soubesses a vontade que eu tenho de estar contigo, de me sentar a ouvir-te falar até adormecer. O lume a crepitar, a música do vento na chaminé e a libido serena como uma seara depois da ventania.
Há um comboio arfando pela serra acima carregado de memórias; um dia espero por ele numa estação para ver se desembarcas.

Passo a passo se escreve o diário de um soldado; fica desenhada na sujidade do chão a marca do cansaço. Tiro a tiro se escreve o diário de um soldado;  fica desenhada na sujidade da alma a marca da morte. É de cansaço e de morte o diário de um soldado e é escrito na sujidade.

Havia rosas vermelhas num jardim de Mueda. Vermelhas. Ao lado, havia lama, pedras e lixo; mas havia rosas vermelhas.  Os soldados caminhavam pesados, deixando marcas de botas no chão como se levassem a morte às costas, as Berliets carregadas levavam soldados e traziam soldados numa traficância de morte. Os helicópteros que passavam por cima de tudo para levar mais soldados , traziam sempre menos de volta. Em Mueda  a morte estava sempre subentendida.
Mas havia um jardim com rosas vermelhas.

No meu sonho há uma ave que toca de leve com uma asa no lençol negro das águas mansas do lago. Há uma distância enorme para percorrer até casa. Tão tarde meu amor, tão tarde. Um arqueiro aponta flechas à lua e eu de mãos vazias sem ao menos um ramo de cravos para lutar contra a indiferença da humanidade.

Pelo Natal íamos ao musgo aos pinhais. Em cima da mesa pequena da sala uns bonecos de barro encaminhavam-se para uma gruta de cortiça, e eu acreditava no menino Jesus. O meu primo na janela em frente: Ó menino Jasus, já comi os rabuçados todos!
Um arranco de pinheiro veio destronar o presépio não sei em que altura da minha infância , depois um velho com cara de bêbado veio para o lugar do menino Jesus. Agora que o Natal é um longo anúncio comercial, faz-me falta ir ao musgo para o presépio. Vamos vó?

Na praia da Costa Nova havia uma escola no meio da areia. À ida para a praia passávamos pela escola, à vinda da praia passávamos pela escola. Nesse perfeito lugar para aprender, aprendemo-nos um ao outro numa tarde escaldante de verão. Vieram as horas, os dias e os anos, e desaprendemos tudo.

O medo conheci-o melhor, não na guerra mas à beira da tua cama. Poucos experimentaram o conhecimento da finitude de arma na mão, mas nada me devorou as entranhas como a tua dor, caída assim nesse campo de batalha. E eu a desaparecer por dentro, até ficar prenhe de medo perante o abismo eminente da tua ausência.

Ah a felicidade num copo de vinho… na adega da casa alta atrás da capelinha de São José roubávamos horas à noite para aumentar o dia. De hora a hora íamos mijar contra o muro do pátio para arranjar espaço para mais um copo.
Os dois zés chorando no ombro um do outro comovidos com o absurdo da vida. E a gente a rir, como se fosse fácil entender o mundo com um copo a mais.
Um dia fizemos um banquete com as batatas cozidas que o Paulo encontrou numa panela de ferro.
Coitada da minha mãe, desgostosa com a maldade do mundo – Ele há gente para tudo meu filho, esta noite inté roubaram a lavaige do porco.

Amei-te há muito, hoje na minha memória. Nessa altura, seguramente, não te amei. Mas hoje lembro-me de ti como tendo-te amado. Já não sou a criança atónita perante a estranheza do íman dos teus olhos ou da tontura com o som da tua voz ou do desequilíbrio de todo o meu ser à tua passagem. Hoje sou um homem que dá nome às coisas e tu uma mulher cansada de o ouvir.

O largo da minha aldeia era o centro do mundo. E como eram grandes as árvores de Natal. O novelo do tempo foi-se desenrolando e agora as árvores de Natal são pequenas e o largo da minha aldeia fica num cantinho do mundo. Ou dito de outra forma, eu cresci demais.

Sentada à beira da estrada como se fora um rio, que se fosse um rio sonhava, aguarda o convite dos homens que passam. Melissa não sorri profissionalmente para os clientes, aprendeu a levar a sério as humilhações da vida.

Uma árvore frondosa a tempestade arrancou. Inesperadamente o vazio de uma clareira substituiu a imponência da árvore.
Haja esperança, porque nas clareiras nascem frequentemente flores.

19 janeiro 2019

A cálida preguiça do vento suão


Hoje estou de cama; se puder, o dia todo. Lá fora o suão a inquietar as oliveiras da capelinha de São José. A levantar as folhas das árvores e ao mesmo tempo a levantar a erva do chão. A levantar as saias das mulheres e ao mesmo tempo a levantar o ânimo dos homens. Só eu quieto. Eu a ver se o tempo não anda. O outono veio amansar o verão quando os dias já caiam de cansaço. Pela manhã os primeiros frios. O ano chegou à terceira idade, mas enquanto o inverno não chega o sol faz o que pode para aquecer o mundo. Uma réstia entra pela janela e aumenta a minha preguiça. Se me levantar vejo o mundo como ele é, assim as coisas são como eu imaginar.

 O desassossego do vento morno a inquietar mais do que as oliveiras; a inquietar tudo. Um ramo da figueira a tentar agarrar-se à janela do meu quarto, e a janela da marquise que aguenta, aguenta gemendo, e depois fica a pedir socorro batendo sem parança. Mesmo as vozes vêm e depois abalam sem terminarem o que dizem, levadas pelo ar tresloucado. As vozes a balouçar ao vento. Só o malho de ferro na bigorna do Ti Zé Sécio não se deixa calar. O Ti Zé Sécio ganha a vida à martelada e não vai ser o vento suão a calar o cantarolar da sua bigorna. Mas hoje é domingo e não tenho o som da bigorna do Ti Zé Sécio para me despertar.
Hoje há missa e tenho de vestir fato. Por isso vou deixar a minha mãe chamar quatro vezes. A minha mãe chama, chama, e à terceira vez consegue acordar-me, se a deixar chamar quatro vezes pode ser que desista.
Se não fosse a missa eu até poderia gostar dos domingos. Eu cá na missa sempre com atenção, porque há uma parte em que toda a gente se levanta e a Mariazinha balouça o vestido às flores. Só que às vezes a irmã põe as pernas à frente e eu não consigo ver. A Irmã já não é nova, vai pra mais de vinte anos, mas deve ter sido gira quando tinha a minha idade.
O problema com a missa é que eu não sei rezar. À segunda frase já estou a pensar noutra coisa, quase sempre no vestido às flores da Mariazinha. Um dia, se treinar muito, vou saber rezar como a minha avó, que não escolhe hora para rezar e nunca perde o fio à meada. Avé Maria Está quedo Nelito Cheia de graça Olha que emborcas ao caldo Senhor é convosco Se adregas a sujar o fato a tua mãe dá-te uma trochada. Mas se calhar uma reza assim não conta. Sei lá, talvez só conte a intenção.
A seguir à missa as mulheres regressam a casa para fazer o comer e os homens à taberna do Sr. Boanerges para uma pinguita. O mata-bicho antes da missa e a sossega depois da missa.
Mesmo sem missa acho que não gostaria dos domingos. Aguim aos domingos finge que é uma cidade. As pessoas parecem estar a fazer de conta como nos teatros. Parecem não ter pressa. Abrandam o passo como se andassem a passear. Os animais ficam nos currais, a não ser os cães que estranham que os humanos não cheirem mal como no resto da semana. Porém, os gatos não, os gatos entretêm-se nos telhados como nos outros dias. Durante a semana volta o pé descalço, a roupa suja, a lama na cara feita de pó e suor.
Em Aguim as pessoas estão sempre a fazer coisas. Apressadas de manhã para o campo, derreadas à tardinha para casa. Um mundo cheio de agitação que faz o meu mundo interessante, e que me dá vontade de ficar parado a vê-las. Quando não se faz nada até se gosta de ver as pessoas a trabalhar, mas acho que quando for grande não quero trabalhar. Toda a gente trabalha na minha família menos o meu avô. Parece que é por ser reformado. Senta-se muito tempo na espreguiçadeira e escreve coisas num caderno. Quando crescer também vou querer ser reformado.
No andar de baixo a casa já desembaraçada do sono. As limpezas de domingo num desassossego de vassouras a levantar pó, de escovas a incomodar o descanso dos soalhos e de móveis ruidosos sem parança que tentam espantar-me o sono.
A minha mãe chama, eu conto: uma vez. A ideia do banho matinal arrepia-me. A ideia do latim do padre São Marcos arrepia-me. A ideia do vestido da Mariazinha arrepia-me ainda mais, mas não o suficiente para me tirar a preguiça. Estou indeciso entre dois pecados, luxúria e preguiça, mas vence a preguiça. Se a preguiça serve para vencer um pecado devia contar como virtude, por isso, fecho os olhos com mais força a ver se volto a adormecer.
De olhos fechados o bulício no andar de baixo até me faz um pouco mais de sono. É como o barulho da chuva; pensar em quem anda à chuva aumenta o conforto da cama, e a canseira de quem tem que esfregar e lavar a casa toda aumenta o prazer da minha preguiça. O suão ajuda. A minha avó, que parece entender o mundo melhor que as outras pessoas, diz sempre “vermelho para a serra, chuva na terra; vermelho para o mar, suão a zurrar” e por isso eu já sabia que este vento preguiçoso acabaria por chegar.
A minha mãe chama. Duas, penso eu. Puxo as mantas e só fico com o nariz de fora.
O cheiro a café enche-me as narinas, e reparo que o estômago tem estado a fazer ruídos estranhos. Imagino o café da minha avó que tem um som espesso quando ela o mexe na cafeteira negra sobre as brasas. “Agora ficas a assantar” e passado algum tempo “a modes que já estás limpo”. A minha avó é a única pessoa que eu conheço que sabe falar para uma cafeteira. Depois despeja o café para uma malga grande. E o som espesso do café… “Agora, um bocadinho de broa esfarelada e açúcar amarelo.” “Está aquase.” Diz ela, desta vez para a malga. Neste momento, chega o cheiro da broa torrada à única parte que tenho fora das mantas e fico a aguardar o cheiro da manteiga de vaca derretida, esticando essa parte do corpo um bocadinho mais para fora.
Estranho que a minha mãe não me tenha chamado já pela terceira vez.
Os passos da minha avó, e depois as escadas a rangerem. O cheiro do café, da broa torrada e da manteiga derretida aumentando. Os passos dela na sala e de repente uma explosão de aromas. Atrás do nariz, todo o meu corpo a saltar da cama. A malga fumegante, a broa esfarelada ainda não totalmente submersa, as fatias ao lado a oferecerem-se à minha gula. Mais uma vez um pecado anula outro, e assim se transforma em virtude. Acho que cometendo todos os pecados da lista, pela ordem da menor para a maior tentação, acabaria por alcançar a santidade. Antecipo o sabor delicioso das migalhas da broa misturadas com o açúcar no fundo da malga e como devagar para o prazer não acabar depressa de mais.
O meu mundo, comigo sentado na borda da cama é um pouco diferente de quando estou deitado, mas também pode ser interessante.
Lá fora apenas o som fugidio das coisas, que o vento traz e leva. Eu já de pé preparado para o banho. Eu já acordado, rendido aos expedientes do amor da minha avó. Preparado para a missa, preparado para o latim do padre São Marcos. Feliz por ir ver a Mariazinha a baloiçar o vestido às flores.
E o cálido vento suão a inquietar as oliveiras da capelinha de São José.


04 fevereiro 2015

Silêncio imperfeito

O dia nasce. O sol ergue-se lentamente. É impossível avaliar o quanto este fenómeno pode trazer alegria a uma pessoa.
Impossível, porque agora, o mundo que conhecemos afastou as trevas e criou um dia constante onde nunca falta a luz. E as trevas fazem falta. Há de haver dentro de nós alguma coisa que aguarda que o dia acabe para alterar a perceção das coisas, para abrandar os sentidos e nos conectar ao mundo interior feito de registos e memórias, de sentimentos e imaginação, e que nos deixa sensíveis aos estímulos exteriores sem a ilusão de os percebermos.
Foi por isso que apaguei a luz.
Desliguei a televisão e fechei-me no quarto. E fiquei dentro de mim só. Procurei até onde pude a memória de te ter amado. Mas não consigo encontrar em mim uma única e inequívoca marca de amor por ti, apenas um difuso sentimento de amizade, ou de fraternidade, o que torna a nossa relação algo incestuosa.
Mas talvez porque não há silêncio suficiente. Nunca há. Dantes quando a luz se ia, os sons que povoavam a noite eram diferentes dos sons do dia. Eram os sons das trevas, os sons a que chamávamos silêncio. Agora não.
Dantes, se se ouviam passos na rua, em direção a Vale de Cid, isso era motivo de alarme. Ou um alvoroço nas galinhas, ou o ladrar de um cão.
É mais difícil encontrar dentro de nós seja o que for sem o silêncio das trevas.
Eu sou do tempo em que a noite era feita de trevas. Em que Aguim mudava de noite, e não apenas porque o sol se punha. Algo em nós se punha também, e era fácil acreditar em todas as coisas que nos parecem impossíveis de dia.
Sinto a falta desse mistério, desse desconhecido, desse temor que a luz desvanece.
A noite a cair e os sons da casa a despertar. As madeiras do sobrado a ranger, a estalar, a ajustarem-se aos frios noturnos. O caruncho a escarafunchar nas portas e janelas. Os ratos furtivos no sótão. Os gatos como uma mola prestes a saltar-lhes em cima. Todo um mundo de sons que não ouvimos de dia, como se a casa acordasse quando nós vamos dormir, ou nela acordassem os espíritos impacientes com a eternidade.
Agora nada disso acontece. As casas não têm segredos, não têm o silêncio que permite ouvir os sons do submundo a que deixámos de dar importância, ou os sons da distância que só o silêncio separava de nós, ou os sons interiores que sentíamos vívidos na nossa memória por não nos distrair o bulício da excessiva lucidez.
Não perceber tudo, não ter demasiadas certezas sobre nada, não explicar o que é mais interessante inexplicável, não acender a luz para verificar, para esclarecer; deixar algo encoberto como nos contos antigos, para que a imaginação nos transporte para uma dimensão da vida mais próxima do sonho, e assim podermos acreditar no que a razão não nos deixa acreditar.
Às vezes, em mim o silêncio perfeito da infância. O silêncio feito dos sons que serviam para ampliar o silêncio.
Passos na noite junto à capela de S. José. Eu acordado a meio do sono por um ritual pagão a que chamavam “Casamento das Cachopas”. Se fosse à janela, cada homem com um funil de almude na cabeça.
Agrupam-se ao lado da casa da minha vizinha como figurantes grotescos de um teatro de Pirandello. Um dos homens tira o funil da cabeça e usa-o como um megafone dando um urro lúgubre e longo na noite da minha infância. Tanto, que ainda me assusta. A minha mãe preocupada com o meu medo. O meu pai indignado com o despropósito. Eu a meio caminho entre o pavor e o espanto. Assustado e deslumbrado como só na infância.
Os homens correndo para os seus lugares numa coreografia furtiva de embuçados em torno da casa da minha vizinha.
Só um fica em frente da janela.
Uma bocarra de funil sarrenta e medonha – De quem são estas casas viradinhas prá capela? A menina que lá está dentro é de todas a mais bela!
Outro funil a responder – Não sei, não sei, mas vou perguntar.
Agora, nada de medonho na noite. Agora, longe da minha infância Aguim é uma memória com alma.
Agora, os teus passos a subir a escada.
– Venho morta de cansaço.
E atiraste-te para a cama.
Agora, um silêncio feito de coisas, todas elas conhecidas.
Os teus passos na gravilha do pátio, depois nas lajes das escadas. A chave na porta. O vento nos pinheiros. A tua respiração ofegante. O som dos teus sapatos atirados pelos pés, como se os teus pés fossem autónomos e não precisassem de ordens tuas, depois um beijo de uns lábios tão autónomos como os teus pés. E só depois disseste:
– Venho morta de cansaço.
O teu corpo sobre a cama.
Eu a pensar nesta nossa relação sem poesia nem encanto, escrevinhava num papel algumas destas palavras. A minha mão também como se não precisasse da minha ordem para escrever, enquanto eu falava contigo.
Acabaste por adormecer.
A tua roupa repousa sobre o corpo, não te veste. Debaixo, o teu corpo fervilha de vida. Cada músculo relaxado é uma mola apenas aguardando o impulso, a própria pele sob os panos é uma planície de serenidade apenas contida e o arfar do teu peito aumentando e diminuindo o volume dos seios, convida a soltá-los.
A roupa apenas pousada sobre o teu corpo como uma carícia, como um afago de pano sobre a pele, as pregas a realçarem os volumes. No côncavo das coxas uma almofada de ar sob o tecido deslisa suavemente, aproximando-se da púbis e afastando-se, conforme inspiras ou expiras, tão suavemente que se calhar é só imaginação minha.
A tua serenidade, como um abandono do teu corpo ao meu cuidado, convida todos os meus instintos de predador à visão da presa vulnerável e, ao mesmo tempo, atrai o meu olhar ao deleite tranquilo das tuas formas generosas.
O melhor de estar a olhar-te, é saber que vieste por mim, confiante em te saberes desejada. Vieste, e assim de tão serena adormeceste, confiando-me o teu corpo.
Assim, não parece errado o que fazemos, és apenas um fruto que se me oferece passivamente, como todos os frutos se nos oferecem. Como o pomo primevo se ofereceu, inocente, na alegoria de todos os pecados, para que o ónus da culpa pertença a quem o come, como se quem o come não tivesse sido predestinado para o comer, no irresolúvel paradoxo entre o destino e o livre-arbítrio.
Tu, a Eva e a maçã – dois em um. Móbil e crime, tentação e pecado, o irrecusável prazer antecipado e tão fácil e o objeto inevitável da culpa.
Às vezes penso que só te desejo porque não devia desejar-te.
E agora, no silêncio imperfeito do quarto, ouço o leve sopro da tua respiração. Era só levantar-te a roupa e consumar o meu delicioso pecado. Cumprir o meu destino, exercer o meu livre-arbítrio sem dó nem piedade e sentir-me completo com isso. Mas vou ficando imóvel e em silêncio, só para exercer este enorme poder de decidir que tudo o que fizer posso não o fazer, mas só se preferir o perverso prazer de pecar em contemplação, ao pecado simples do prazer em ato.
Faz-me falta, com dantes, a noite tenebrosa, a noite fantástica e o vago temor de que poderia nunca mais amanhecer.
Então, possuir-te-ia como uma fatalidade sem recurso – os nossos sons juntar-se-iam aos sons do silêncio: dois corpos procurando dentro um do outro algo mais do que o momento irreversível do orgasmo, e quem sabe, no sortilégio da noite cerrada, fossemos tocados pela transcendência.
Talvez assim te amasse. Fizesse mais do que desejar-te – mais que ter-te e perder-te.
E quando a noite se esvaísse amaria então, também a luz.
Enquanto dormes, eu alinhavando palavras sobre o papel como um embuçado lançando pulhas na noite do Casamento das Cachopas. Não mais do que um embuçado nesta casa cúmplice que nos acolhe – tu a pecadora inocente dormindo, como uma rês no covil do lobo, eu o próprio pecado na pérfida vigília do predador adorando a presa – e a noite, sem poesia nem mistério, avançando indiferente.
E já é dia. O sol alumia tudo. Tudo fresco, tudo renovado. E uma alegria vinda da madrugada, previsível e singela, chega até mim, mas sem a vitória sobre a noite subjugada não me contagia.
Dantes, o nascer do sol dava-me a alegria triunfal de um adolescente apaixonado.

A saca de milho

O prazer dos pés nus na quentura do pó, a estrada como algo pousado com preguiça sobre os vinhedos só para a gente passar, o ar sem movimento a dar a impressão que no verão vivíamos no vácuo e as distâncias enormes. O som das enxadas ferindo as côdeas da terra e um cheiro de tantas coisas no ar ao mesmo tempo, que não dava para dizer a que cheirava. Uma coisa é certa, o tempo não andava, vivíamos num presente que apenas dilatava, e nós nele como fazendo parte de uma fotografia animada.
Quando comecei a ir à escola, às vezes desviava-me pela rua da loja para sentir o cheiro do salitre do bacalhau, da moagem do café e do sarro do vinho a saírem da loja da senhora Idalina. À porta, do lado esquerdo, uma saca grande com milho. Em minha casa só no arcão, com uma tampa demasiado pesada, e aqui mesmo à mão. Olho para um lado e para o outro e entro sorrateiro na loja. Vejo a saca do milho indefesa. Quando ninguém reparava em mim enterrava devagar uma mão no milho. Meio minuto de prazer bastava. Depois retirava a mão devagar. E uma certa vergonha fazia-me fugir do local do crime. Às vezes, mexia mesmo os dedos da mão, e o prazer multiplicava-se por cinco, nas entranhas granuladas do milho. A partir do dia em que fui descoberto a minha vida mudou, porque aquele prazer aumentou desmedidamente, por ter ganho o estatuto de pecado.
Foi por essa altura que me convenceram que para além dos meus pais havia ainda um poder maior e mais intransigente. O pior é que parece que está em todo o lado e vê tudo o que fazemos. Umas vezes afligia-me com isso e a vida tornava-se tão chata como a sala de espera do doutor Santos, outras vezes parecia que podia dar-se o caso de essa autoridade estar distraída e não me ver cometer o terrível pecado de enfiar a mão na saca do milho.
Deve ser isso também que pensa o padre quando está com a afilhada na sacristia, e o Tó, que ajuda à missa, se põe muito quieto encostado à porta. O padre às vezes apanha deus distraído. E a minha avó para a minha mãe: - É a amázia. Eu um dia para o meu avô, assim à traição: - O que é uma mázia? E ele com um sorriso de viés como quando olhava a moça serrana de costas, a fazer as camas de lavado: - Quem é que tem uma amázia? E eu: ¬- ¬É o padre Amâncio. O meu avô riu durante muito tempo até ficar sem fôlego, e depois como se me estivesse a resolver um problema da escola: - Sabes, o padre é um homem, e às vezes precisa de uma mulher. Estranho, pensei eu, e depois em voz alta: - Precisa de uma mulher para quê?
O meu avô riu até se engasgar e tossiu durante muito tempo, depois quando pareceu ficar melhor: - Para que a mulher lhe sirva. Quando a mulher quer, serve sempre ao homem.
Não entendi. Mas uma suspeita de que as palavras não servem para nos entendermos nasceu aqui. As palavras que servem para explicar, servem também para confundir.
Mas tu eras simples demais para confundir. Era quase sem palavras que nos explicávamos. Chegavas e eu deixava de ser filho-único; partias e eu voltava ao meu mundo de uma só pessoa. Porém nunca te amei, talvez porque me habituei a ti cedo demais e o amor precise da diferença e do mistério e de alguma transgressão.
E as palavras do meu avô, que ainda não entendia, faziam-me imaginar-te como um casaco que tivesse que usar primeiro, para ver se servia. Uma pessoa, assim como um sapato, mas que se ajustasse ao pé, fosse qual fosse a nossa medida. Como o milho na saca da loja da senhora Idalina se ajustaria a qualquer mão. O prazer que senti ao lembrar-me da minha mão a penetrar os interstícios do milho deu lugar a uma profunda repulsa ao associá-lo a ti. Seguramente, não eras à minha medida; seguramente, não te imaginava ajustável. Habituei-me a ver-te exclusiva mas não como um par, éramos sapatos do mesmo pé.
E todo o universo dos meus sentimentos e sensações, dos meus instintos e impulsos, dos meus prazeres e repulsas se reorganizou em torno desta impossibilidade. Há uma compatibilidade, uma acomodação entre dois diversos que jamais pode existir entre dois idênticos; amar-te seria incestuoso.
De tudo isso, só a saudade do pó nos pés nus, que são muito mais as coisas que eu esqueci do que aquelas que recordo. E as distâncias enormes. Ou me engano muito ou andávamos mais rente ao chão, mais perto do coração da terra, tanto, que me lembro da transpiração quente que subia do que parecia simplesmente uma passadeira de pó apenas pousada sobre os vinhedos, distorcendo a paisagem à distância. E os sons ecoando a lonjuras impensáveis, dessincronizados com as imagens, como num filme mal montado.
Dá-me a ideia que o mundo acelerou, que as pessoas perderam a paciência, que tudo se tornou mais assertivo. Hoje ninguém me acusaria de impudências por violar uma saca de milho; seria simplesmente tomado por imbecil.
Mas agora que isto me veio à memória tenho a noção de ser justamente essa pudicícia que se perdeu com o tempo, e o que me ficou foi um sentimento de perda, de oportunidade perdida.
O Largo do Sobreirinho parece-me grande demais hoje. As folhas dos castanheiros da Índia foram mudando de tonalidade como se um fotógrafo tivesse estado a corrigir a cor no monitor de um computador. Mas toda a cor perdeu a vibração e se foi tornando pardacenta à medida que a tarde esmorecia. As pessoas regressam a casa.
O carro em que vens para.
Quando a porta do carro se abriu, ainda ouvi a voz do meu avô a dizer que toda a mulher se pode ajustar à medida do homem, e agora, essas palavras despertaram em mim algum instinto primário que a inocência perdida já não pode ignorar.
Tu sais, e as crianças e o pai demoram mais um pouco. Mas não sais logo. Uma perna alonga-se do carro até ao lancil. A biqueira da sandália a tatear o passeio. E toda a extensão desnudada da tua perna a sair do carro numa ligeira torção, que realça a dinâmica das curvas e excita o canibalismo da minha imaginação. Sais e olhas para onde estou, mas como se não me visses. Uma falsa omissão como uma mensagem de cumplicidade. Olhamo-nos por um eterno segundo que me rebobinou a memória até um lugar na nossa infância, onde poderíamos ter tido ao menos um amor impubescente.
E vinda sem aviso, obsessiva e impúdica, a imagem da minha mão a afundar-se nas intimidades da saca de milho.

Flash-backs


Café

A minha avó sopra uma brasa. A brasa numa cama de caruma. Sopra.
Depois acende-se uma chama na caruma e nos olhos da minha avó.
Em breve o aroma do café da manhã atraía todos em redor da mesa da cozinha do forno.
Desde aquela brasa até à máquina de cápsulas de café passou tanto tempo que eu já não devia lembrar-me disto, mas sempre que tomo a bica sinto que me falta qualquer coisa.
E não é café.

Cansaço

À hora em que o sol preguiçoso de Outono se servia da erva alta para desenhar longas pestanas de sombra sobre o pó da estrada de Vale de Cide, eu olhava os jornaleiros, cansado só de ver os corpos estomagados pelo martírio do farpão nas leivas barrentas dos vinhedos do Solão.
A minha doce lassidão perante a tortura.
Eles, talvez interpretando a inclinação da luz, pousavam o farpão. E a tarde morria.
Endireitavam a custo o dorso, com ambas as mãos apoiando as cruzes. Quase se ouviam os gonzos perros daquelas costas a ranger.
E espreguiçavam o olhar pela estrada fora, por onde se faria o caminho para o descanso.

Setembro

Quando o Verão era mais barato apanhávamos a camioneta para a Costa Nova.
Passávamos a ponte de madeira a pé. Ao longe cones de sal.
Se só os cones eram brancos, porque é que aquelas manhãs de Setembro da minha infância passaram para os meus sonhos?

Guerra

O vento soprava vindo de Sueste. Uma farripa de cabelo passava-me à frente dos olhos entrecortando a paisagem. Claro, escuro. Claro, escuro.
As palavras do Dr. Diógenes a falar do dever e da honra. As palavras do meu pai a falar de afetos. A guerra à espera.
Como se podem tomar decisões com o cabelo à frente dos olhos?

Fotos por extenso


Retrato à minha avó

Virou-se para a esquerda e apanhei-a de lado. De olhos semicerrados para tentar dissipar o enevoado das coisas em seu redor. "Enxergo só uma névoa, meu filho."
E o seu tépido sorriso tentando iluminar-lhe o rosto.
Ainda sinto o tom com que dizia "meu filho", sem o sentimento de autoridade e de posse que os pais costumam usar, mas como se fosse uma dádiva de que já não estivesse à espera.
E aquele seu equilíbrio entre uma leve tristeza e uma pálida alegria que captei por sorte. Era a sua marca. Era a sua maneira de estar em paz no meio da turbulência. Era a sua forma de ser superior.
O vento soprou um segundo antes de eu disparar a máquina e desfez o penteado apressado que ela compusera com os dedos para a fotografia. "Deixa-me compor estas lãinças, meu filho."
Ao fundo, as manchas desfocadas do que julgo ser um limoeiro que ainda existe e de um pilar que servia de base a uma manilha de esgoto que o meu avô transformara em vaso de flores.
Ao fundo, na foto, o mundo como ela o via: "Uma névoa, meu filho."




Close up de uma videira


O ramo de videira parece de cobre ou de ouro, pintado pelo outono e retocado pelo pôr-do-sol. Ocupa um terço da foto, os outros dois terços são ocupados principalmente pela vinha do Vale d'Aveia. Tudo na mesma cor. Tudo em cobre. Tudo em ouro.
Dava prejuízo. E o meu pai continuava a podá-la, a empá-la, a vindimá-la; e depois de novo, tudo outra vez, e outra e outra vez. E sempre a dar prejuízo.
Um dia pagaram-lhe para ele arrancar tudo aquilo e ele chorou. Chorou como um pintor choraria por receber dinheiro para retirar os seus quadros de uma galeria.
Acho que se sentiu prostituído.
"Que futuro tem um país que dá dinheiro pra nós arrancarmos as vinhas?"
Tem este futuro, pai. Já cá chegámos. Um futuro prostituído.
Ao fundo a elevação erógena de um seio, na silhueta difusa da Serra do Buçaco.




Família de jornaleiros com burro


A foto irradia uma luz morna. À direita as corolas violáceas da buganvília do Sr. Afonso Bandarra. À esquerda a estrada do arvoredo.
Conheci aquelas pessoas. O homem para o burro: "Anda boneco!" A mulher atrás quase a correr e o sogro de enxada às costas, como uma arma pousada no ombro.
O sol baixo de fim de tarde desenha sombras preguiçosas no asfalto. O burro puxa sem esforço a carroça. Adivinha-se o cheiro bom do estrume. Adivinha-se o murmúrio dos castanheiros-da-índia de folhas douradas pelo verão de S. Martinho.
A roupa no coradoiro da erva baixa do declive da Capelinha do S. José a apanhar sol, onde pela Primavera nascem flores.
Lembro-me de ter descido do telhado depois de ter tirado a foto para também fazer parte deste cenário, como quem quer participar de uma festa.



A casa velha

O tom de sépia-claro dá ao mundo, visto assim, um ambiente onírico. Mas um ambiente onírico de um sonho sonhado há muito. Uma visita do passado que nos interrompe o presente inesperadamente. O mais próximo do espiritismo a que a minha imaginação materialista pode chegar.
Melhorei a foto no Photoshop e consigo identificar a bicicleta do meu pai. As canas a segurarem as sardinheiras. Ao longe, uma mulher e as suas duas filhas ficaram assim congeladas no tempo, e jamais chegarão ao destino.
À porta da loja uma peça de pano esvoaça desafiando a imaginação alada da minha mente.
A janela aberta no rés-do-chão para dar ar e luz à minha mãe a costurar ali mesmo por detrás da parede, enquanto na pequena varanda do primeiro andar, a minha avó e a minha visavó olham para o fotógrafo.
A foto não tem céu. Tem uma luz acetinada que não faz sombra, como costuma ser a luz coada pelas clarabóias nas grandes mansardas.
Uma aberta entre duas chuvadas. Uma aberta grande, porque deu tempo para o meu avô limpar a valeta e o pequeno aqueduto debaixo do patamar à entrada para o terraço. Uma aberta muito grande, porque ele não teve pressa de ir despejar o terriço, e o balde virou-se.
"Aquele home nunca acaba as coisas…" disse por essa altura a minha avó. Disse-o toda a vida, a mostrar a sua incompreensão para com a falta de disciplina do meu avô.
Parece que herdei essa falta de disciplina, por isso compreendia o meu avô. Desimpedidos a valeta e o aqueduto, o que era urgente ficou feito; a arrumação é uma tarefa menor, outras coisas urgentes nos chamam. O mundo está cheio dessas coisas urgentes que não nos deixam acabar os projetos, a partir do momento em que deixam de ser urgentes, ou incógnitos, ou originais. Para quê continuar a fazer uma coisa se já sabemos o seu desfecho? Seja um quadro, um poema... ou a limpeza de uma valeta.
Sempre adorei as coisas inacabadas. As capelas incompletas, os romances inconclusos, o movimento interrompido nas fotografias. Onde ia aquela mãe com as filhas que esta foto imobilizou? Não o saber é que é interessante.
Enquanto isso, a minha avó e a minha bisavó olham o fotógrafo sem mistério nenhum.

Diário inconstante

Janeiro, 6

Da fundura do tempo a memória do Dia de Reis, na época em que me cabia a tarefa de desmanchar o presépio. O presépio era uma versão íntima de uma cascata S. Joanina, e o Menino Jesus ainda não tinha envelhecido ao ponto de parecer um pantomineiro de feira com a sua cara de bêbado e barbas de franja de reposteiro, e para cúmulo do mau gosto, envergando um pijama garrido oferecido pela Coca-Cola.
Um dia, lá em casa, por alturas do início da minha escola primária, substituímos as figuras da Natividade por um profano píncaro de pinheiro, esgrouviado e meio torto, enfeitado com neve de algodão e uns penduricalhos de plástico, e rendemo-nos modestamente ao consumismo capitalista. E o Menino Jesus envelheceu subitamente e tornou-se no Pai Natal, com aquela cara de avô gaiteiro. Que mão é esta que reduz todas as coisas que nos enfeitam a vida a objetos sem alma?


Fevereiro, 10


Há anos que não vinha aqui. Parei o carro e subi a vereda do Monte Grande. Tudo parece pequeno, como acontece com as árvores de Natal: nós crescemos e elas ficaram com o tamanho da infância.
Caminho, ouvindo as pedras a gemerem debaixo dos ténis. Conheço esta música. Sorrio, porque não tenho medo agora.
No outono de 74 vim aqui um dia só para cheirar a urze, ouvir o sussurro do pinhal e fumar um cigarro, e entrei em pânico. As pedras a gemerem debaixo dos pés, e eu ali num trilho deserto, sem arma, sem companhia.
O chão era o nosso inimigo e as picadas de Cabo Delgado traiçoeiras. Não se pode lutar contra o chão, cada passo era um ato heroico de sobrevivência.
Levei anos a reconciliar-me com os caminhos e as veredas.
Só de longe em longe, quando me apanha distraído, ainda a visão das goelas carnívoras da Terra abocanhando-me uma perna.


Abril, 18


Era mais ou menos aqui que estava a bomba do arco de ferro. O corpo cilíndrico da cobertura do poço escondia um mundo misterioso e subterrâneo. Ainda se sente a calma das tardes de verão, em que a vida à superfície do mundo, na sua aparente inconsequência, de vez em quando alterava levemente a substância das coisas. Tenho a certeza que a luz era mais doce. Tenho a certeza que o relógio do tempo tinha outros vagares. Tenho a certeza que se vivia mais; não porque os anos fossem mais numerosos, mas porque os segundos eram mais longos, muito mais longos.
O Tempo anda à velocidade por que passamos pelas coisas, e, no tempo em que havia aqui uma bomba de arco de ferro, eu não passava; vivia aqui.


Junho, 6


Na estrada de Vale-de-Cide, daquele lado, onde o muro do arvoredo criava uma cabeceira em que apetecia encostar a cabeça para dormir a sesta, havia um pó finíssimo, sobre o qual os camponeses deixavam uma nítida impressão plantar a cada passada.
Nessa altura homem e planeta eram uma comunhão. No meu egoísmo bucólico ignoro toda a dor precisa para imprimir cada uma daquelas pegadas na poeira da estrada, morna como borralha aquecida na fornalha do Sol.
Hoje ninguém passa a pé naquela estrada com o peso de um dia de lavoura às costas, e sobre o alcatrão não há uma só marca humana.
Há de haver uma forma de sermos felizes sem desumanizarmos o mundo.


Junho, 10


A minha avó vinha aqui à travessa da rua da loja consultar o Sr. Augusto enfermeiro. O Sr. Augusto enfermeiro era o verdadeiro médico da aldeia. Eu esperava sentado no chão empedrado da travessa da rua da loja, que fazia as vezes de sala de espera, e achei o livro. Não era grande o livro. Parecia um pequeno taco de madeira suja, de folhas grossas.
"Não faças teu o que não é teu" era o aforismo da minha mãe para que procurasse sempre o dono das coisas que encontrasse e assim perdesse o prazer da descoberta e os favores da fortuna.
Guardei o livro com o gozo de quem lança mão de um furto e todas as noites o olhava secretamente, tentando interpretar as manchas de tinta que sabia chamarem-se letras.
Fui entendendo o que estava escrito à velocidade com que fui aprendendo a ler. Letra a letra, palavra a palavra.
Mas um conjunto de palavras não é um texto, como um conjunto de ramos não é uma árvore. Tem sempre que haver um tronco comum para que as palavras façam sentido. Esse tronco demorou tanto a aparecer que as palavras ficaram soltas na minha memória antes de lhes ter captado o sentido.
As palavras bailavam na minha mente. Não eram uma história, eram um bailado de palavras.
Tenho hoje a certeza: a poesia nasceu em mim, muito antes de eu saber ler.